sexta-feira, 25 de novembro de 2016

FALANDO DA MARLI

O primeiro contato que tive com a Marli foi ainda adolescentão ginasiano. Ela recém-saída da prisão. Eu e um amigo, o Mário Barnabé, estávamos indo a pé da estação ferroviária para o centro de Caieiras, quando a encontramos e subimos conversando. Não me lembro do teor da conversa, provavelmente futilidades. Eu apenas a conhecia de vista e, claro, pela fama de “subversiva”, adquirida no município, por ter sido presa pela ditadura militar. Cumpriu dois anos sob torturas.

Anos depois ela acabou se aproximando da “nossa turma” e ficamos muito amigos. Saímos muito juntos pra ir ao cinema e ao teatro, pra ver fósseis em pedreiras ou mesmo passeios corriqueiros sem qualquer motivo especial. Não havia qualquer relação que não fosse amizade.

Marli foi minha exegeta nas questões políticas. Sete anos mais velha que eu e uma bagagem de vida ainda maior. Não que eu fosse um alienado total, mas ainda não passava de um ripongo rebelde. Foi por seu intermédio que comecei a ter contato com os escritos de esquerda. Além de centenas de artigos, revistas e jornais que ela me passava, acabei lendo outra centena de livros de, ou sobre, Marx, Lênin, Trotsky, Mao Tse Tung, Rosa de Luxemburgo, Alexandra Kolontay, Revolução Russa, Chinesa ou Cubana, entre tantos. Também com a Marli tive meus primeiros contatos com a literatura soviética, ainda que pese ser o Realismo Russo. Ela ali presente pra discutir e dirimir minhas tantas dúvidas.

Dessa maneira, assim, sempre juntos algo teria que acontecer, mais cedo ou mais tarde. Aconteceu, não sei se cedo ou tarde, pois estava bêbado, na casa de um amigo, o Abel. Depois disso fomos viajar juntos por uns dias.

Ela acabou engravidando e acabamos casando. Casamento não estava nos planos, mas o fizemos por um pedido da mãe dela e do meu pai.

Eu e a Marli nunca tivemos um relacionamento tradicionalmente romântico, tipo novela ou romances melosos. Tínhamos muito carinho e respeito. Tínhamos em comum, mesmo com as diferenças de concepção políticas que foram surgindo entre nós, a indignação contra o capitalismo, a luta contra a exploração, aquela vontade de transformar o mundo. O alicerce da nossa vida em comum estava extremamente fundado nesse aspecto. Pode parecer duro dizer algo assim, mas tínhamos uma militância em comum.

Com o tempo as decepções políticas foram surgindo. Dois filhos nasceram. Tempos depois passei a frequentar o Centro de Cultura Social, no Brás. Um grupo libertário. A Marli, também desgastada pelas decepções, foi se recolhendo cada vez mais, mantendo praticamente apenas uma atuação dentro da sua categoria profissional, os professores.

Nossa relação, enraizada nas questões políticas, também foi se desgastando. Tínhamos perdido em todos os sentidos, mas principalmente a chama.

Acabamos por nos separar e mais tarde veio o divórcio. Muito por minha culpa. Além desses fatos, que só percebemos mais tarde, nos afastamos devido minha incapacidade e, algumas vezes, por falta de sensibilidade, em perceber esses processos e aquele mais profundo pelo qual eu estava passando. Não soube lidar com essas minhas mudanças e trouxe com isso muita mágoa. Não fico me martirizando com culpas, mas tem algo aqui dentro que sempre incomoda.

2 comentários:

  1. Bom, Rubens... A questão é que tudo isto o adorna, este passado o escultura... Enfim, o que vc foi ou como pode escolher com que sabia e sentia na época foi o que foi. Foi o possível. E agora vc continua sendo o possível resultado disto tudo. Gosto de ler duas memórias!

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  2. Essas memórias toscas são uma espécie de herança, da qual, provavelmente, você será o executor para aqueles que não chegaram até aqui... rs...

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