Esse texto eu publiquei, coincidentemente, em 6 de dezembro de
2013, dentro de uma pesquisa sobre violência, para a revista Rebosteio, que
publicávamos à época.
DIOGUINHO & O NEOLIBERALISMO
Há décadas que o poder público no estado de São Paulo
transformou-se em celeiro e, evidentemente, coiteiro para toda sorte de
desmandos e crimes do chamado neoliberalismo. Na verdade, exercem um tipo de
poder não público, mas de acobertamento de uma série de negociatas escusas e
questões ilícitas.
Retroagindo no tempo, o fim do século 19, no estado de São Paulo, deu
conhecimento a Dioguinho (1863 – 1897), um dos mais famosos, famigerados e
procurados bandidos paulistas, que agia na região da Alta Mogiana. Diogo da
Rocha Figueira, segundo consta, começou sua vida de crimes aos 20 anos ao matar
um gerente de circo que havia maltratado o irmão mais novo de sua esposa.
Entre muitas lendas e exageros o nome de Dioguinho esteve ligado a diversos
crimes, muitos verdadeiros, com requintes de crueldade e gratuidade. A imprensa
da época, ávida de notícias com esse caráter de violência, tratou de
transformá-lo em uma celebridade e, décadas depois, já no século XX passou a
chamá-lo de “Lampião de São Paulo”, comparando-o ao cangaceiro, chefe do
banditismo no nordeste do Brasil. Em função das 50 e tantas à 100 mortes a ele
atribuídas, embora “só” admitisse 24, sua prisão tornou-se questão de honra
para a polícia do estado, que mobilizou boa parte do seu contingente para diversas
tentativas de captura.
Por outro lado, o “matador dos punhos de renda”, era muito próximo aos coronéis
do café e chegou até a exercer o cargo de Oficial de Justiça, que lhe permitia,
junto ao seu bando, delinquir, intimar e intimidar. Chegou a ir a julgamento
por diversos crimes, mas era absolvido. Isso até a coisa ficar insustentável.
Na região da Alta Mogiana, onde atuava, compreendida por Batatais, São Simão e
outros municípios, Dioguinho tinha muitas relações e, portanto, diversos
coiteiros, ou seja, pessoas que o acobertavam dando-lhe guarida, para
esconder-se da polícia. Meu bisavô, Desidério, um italiano comerciante dessa
região, foi um desses chamados coiteiros do Dioguinho.
Essa história ouvíamos, meus irmãos e eu, de meu pai desde muito cedo. Dizia
que Dioguinho costumava chegar durante a noite na casa de seu avô materno,
geralmente durante as fugas de algum cerco policial. Nunca entrava na casa,
fazia as refeições e dormia sob um grande pé de laranjas, no fundo do quintal,
para evitar ser apanhado de surpresa. Como uma espécie de troca de favores, nas
conversas sempre perguntava ao meu bisavô se alguém estava devendo no armazém e
não queria pagar. Caso houvesse, ele ia fazer uma visita ao devedor no outro
dia, que, evidentemente, arranjava um jeito de acertar a dívida no prazo por
ele estabelecido. Podemos imaginar o tipo de “argumento” utilizado com essas
pessoas.
Tempos depois Dioguinho e seu irmão foram emboscados pela polícia, quando
remavam em um barco pelo rio Moji Guaçu. O corpo de seu irmão foi localizado,
mas o de Dioguinho jamais foi encontrado. Assim, muitos acreditaram que ele não
tinha morrido, reforçando a lenda falsamente robinhoodiana que dele
alimentaram, fazendo crer que muitos crimes ocorridos décadas após a emboscada
eram de sua autoria.
Assim como em outros países o povo brasileiro tem uma grande identificação e
afinidade com o banditismo. Talvez essa “heroificação” do bandido tenha em seu
cerne uma oposição ao poder constituído, tão bandido quanto. O banditismo acaba
sendo transformado em uma espécie de vingança popular aos desmandos dos
poderosos. Claro, isso no imaginário popular, pois grande parte dos criminosos,
seja individuo ou em bando, sempre esteve a serviço de algum tipo de poder,
seja dos latifundiários, seja da igreja, seja de políticos, comerciantes ou
industriais, quando não, desequilibrados que extrapolam em busca de vingança
pessoal primeva.
Raramente há um tipo de banditismo que poderíamos chamar de politizado ou,
então, com raízes sociais. Caso raro, aqui em São Paulo, é o Meneguetti, com um
discurso articulado e anarquista.
Mas... sim, eu falava sobre o neoliberalismo que governa o estado de São Paulo
há décadas.
Nem sei se a antiga estrada de ferro da Mogiana ainda funciona, ou se foi
desativada para o privilégio da indústria automobilística e petroleira. O
grande negócio hoje é o metrô e a CPTM. Claro, a imprensa que naquela época
exigia a prisão do Dioguinho hoje nem podemos chamar de omissa, pois compactua
de maneira acintosa e criminosa com esse desgoverno. A fantasia romântica foi
trocada pela brutalização. Os coitos e o linguajar caipira italianado foram
trocados por elegantes escritórios, onde homens de ternos “negociam” em
diversas línguas. A polícia já não persegue: está sob ordens. A justiça...
quem?
Conta a lenda que dois sujeitos estavam discutindo sobre quem tinha a melhor
pontaria. Cheios de fanfarronice iam desfiando suas proezas. Dioguinho, que por
ali passava, ficou ouvindo a lengalenga dos dois “campeões” do tiro.
Chamando-lhes a atenção, Dioguinho apontou para um sujeito, bem distante, que
dormia recostado em um mourão de cerca. Apontou, atirou e matou o sujeito,
calando a boca dos outros dois. Mais que uma boa pontaria isso é o
neoliberalismo em estado bruto.
Como querer que apareçam corpos?