terça-feira, 22 de novembro de 2016

AMARCORD

Ao Rodrigo Machado Freire


Fundar um partido político, dito de esquerda, lá pelo fim da década de 1970 e começo da de 1980, em uma cidade conservadora, como Caieiras, era uma tarefa hercúlea. De um lado o domínio de uma empresa, dona de 70% do total das terras do município que, junto à igreja, determinava o modus vivendi da população. Do outro lado, políticos populistas, venais e conservadores que se confundiam, mesmo sob o rótulo de situação ou oposição.

Ainda vivíamos sob as asas negras da ditadura militar, embora acreditássemos, à época, que já era seu estertor. Sob essa situação tivemos todo cuidado no trabalho de legalização do partido, inclusive na burocrática, pois estávamos conscientes de todos os empecilhos que iríamos enfrentar. Essa postura nos rendeu elogios, por parte dos responsáveis pelo cartório eleitoral da região, como o único partido a se legalizar sem qualquer problema e, acreditem, um dos primeiros de todo o estado de São Paulo a estar totalmente registrado, sem qualquer pendência nas exigências do TRE.

Com toda essa burocracia, além das provocações e perseguições policiais, essa questão não foi, de longe, a mais complicada. Estávamos próximos às primeiras eleições após a reforma partidária e aqueles amigos, os primeiros filiados na fundação do partido, começaram a trazer outras pessoas, a eles ligadas, com o claro objetivo de saírem candidatos. Com raríssimas exceções, não havia qualquer identificação ideológica. Em uma ponta apenas números que garantiriam votos em qualquer decisão e, em outra, a possibilidade de um cargo eletivo.

Portanto, o PT – Partido dos Trabalhadores, em Caieiras, nasce sem qualquer identidade. Toma corpo dentro do interesse eleitoreiro de algumas “lideranças” sobre o interesse eleitoreiro de gente que só tinha esse objetivo.

Marli, Abel e eu formávamos o grupo radical. As relações com essas pessoas passaram a se deteriorar assim que começamos a defender as responsabilidades ideológicas. Ninguém estava interessado na formação de núcleos, ninguém estava interessado em discutir os princípios do partido, que não conheciam. Embora levássemos alguns especialistas, em reuniões, poucos estavam interessados na construção de um plano educacional, de saúde ou de obras para um possível governo popular.

Marli, com quem eu era casado, era um ex-presa política, assim como o Abel, também preso durante a ditadura militar. Eu era o sujeito anárquico, rockeiro, como chamavam, e meio ripongo. Esse conjunto era o que provocava evoluções intestinais na sociedade caieirense. Não imaginávamos apenas que também estaria no bojo do partido.

Uma noite, o presidente do partido e nosso compadre, também candidato a prefeito, aparece em casa meio sem jeito, querendo falar alguma coisa. Enrola daqui, enrola dali e, muito constrangido, nos diz que os membros do partido vinham se reunindo sistematicamente para discutir a expulsão de nós três. Dessas reuniões vinham participando pessoas muito próximas, que considerávamos amigos e, inclusive, esse nosso compadre e companheiro que, na última hora, teve dores na consciência.

O motivo da expulsão, bem, a Marli e o Abel eram subversivos e eu era maconheiro.

Marcamos uma reunião e colocamos o caso em questão e, que se assim decidissem, nos expulsassem cara-a-cara e não através de encontros às escondidas. Óbvio, covardes como eram, ninguém se manifestou. Ninguém assumiu nada. Ninguém acusou ou se desculpou. Somente silêncio. Nunca mais ouvimos qualquer outro comentário sobre isso. A partir daí uma nova relação surgiu com essa gente, pois, cordeiros amedrontados como eram, passaram a aprovar toda e qualquer proposta que um dos três apresentasse, sem qualquer questionamento. Não que fossem se empenhar em executá-las, claro.


Essas questões com “amigos” se repetem em todos os setores onde convivemos e em todos os momentos das nossas vidas. Hoje, em um mundo cada vez mais virtual prefiro mantê-los poucos e cada vez mais virtuais. Aos amigos, mesmo distante, sempre o calor da verdade e do abraço.

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