Ao Rodrigo Machado Freire
Fundar um partido político, dito
de esquerda, lá pelo fim da década de 1970 e começo da de 1980, em uma cidade
conservadora, como Caieiras, era uma tarefa hercúlea. De um lado o domínio de
uma empresa, dona de 70% do total das terras do município que, junto à igreja,
determinava o modus vivendi da
população. Do outro lado, políticos populistas, venais e conservadores que se
confundiam, mesmo sob o rótulo de situação ou oposição.
Ainda vivíamos sob as asas negras
da ditadura militar, embora acreditássemos, à época, que já era seu estertor.
Sob essa situação tivemos todo cuidado no trabalho de legalização do partido,
inclusive na burocrática, pois estávamos conscientes de todos os empecilhos que
iríamos enfrentar. Essa postura nos rendeu elogios, por parte dos responsáveis
pelo cartório eleitoral da região, como o único partido a se legalizar sem
qualquer problema e, acreditem, um dos primeiros de todo o estado de São Paulo
a estar totalmente registrado, sem qualquer pendência nas exigências do TRE.
Com toda essa burocracia, além
das provocações e perseguições policiais, essa questão não foi, de longe, a
mais complicada. Estávamos próximos às primeiras eleições após a reforma
partidária e aqueles amigos, os primeiros filiados na fundação do partido,
começaram a trazer outras pessoas, a eles ligadas, com o claro objetivo de saírem
candidatos. Com raríssimas exceções, não havia qualquer identificação
ideológica. Em uma ponta apenas números que garantiriam votos em qualquer
decisão e, em outra, a possibilidade de um cargo eletivo.
Portanto, o PT – Partido dos
Trabalhadores, em Caieiras, nasce sem qualquer identidade. Toma corpo dentro do
interesse eleitoreiro de algumas “lideranças” sobre o interesse eleitoreiro de
gente que só tinha esse objetivo.
Marli, Abel e eu formávamos o
grupo radical. As relações com essas pessoas passaram a se deteriorar assim que
começamos a defender as responsabilidades ideológicas. Ninguém estava interessado
na formação de núcleos, ninguém estava interessado em discutir os princípios do
partido, que não conheciam. Embora levássemos alguns especialistas, em
reuniões, poucos estavam interessados na construção de um plano educacional, de
saúde ou de obras para um possível governo popular.
Marli, com quem eu era casado,
era um ex-presa política, assim como o Abel, também preso durante a ditadura
militar. Eu era o sujeito anárquico, rockeiro, como chamavam, e meio ripongo.
Esse conjunto era o que provocava evoluções intestinais na sociedade
caieirense. Não imaginávamos apenas que também estaria no bojo do partido.
Uma noite, o presidente do
partido e nosso compadre, também candidato a prefeito, aparece em casa meio sem
jeito, querendo falar alguma coisa. Enrola daqui, enrola dali e, muito
constrangido, nos diz que os membros do partido vinham se reunindo
sistematicamente para discutir a expulsão de nós três. Dessas reuniões vinham
participando pessoas muito próximas, que considerávamos amigos e, inclusive, esse
nosso compadre e companheiro que, na última hora, teve dores na consciência.
O motivo da expulsão, bem, a
Marli e o Abel eram subversivos e eu era maconheiro.
Marcamos uma reunião e colocamos
o caso em questão e, que se assim decidissem, nos expulsassem cara-a-cara e não
através de encontros às escondidas. Óbvio, covardes como eram, ninguém se
manifestou. Ninguém assumiu nada. Ninguém acusou ou se desculpou. Somente
silêncio. Nunca mais ouvimos qualquer outro comentário sobre isso. A partir daí
uma nova relação surgiu com essa gente, pois, cordeiros amedrontados como eram,
passaram a aprovar toda e qualquer proposta que um dos três apresentasse, sem
qualquer questionamento. Não que fossem se empenhar em executá-las, claro.
Essas questões com “amigos” se
repetem em todos os setores onde convivemos e em todos os momentos das nossas
vidas. Hoje, em um mundo cada vez mais virtual prefiro mantê-los poucos e cada
vez mais virtuais. Aos amigos, mesmo distante, sempre o calor da verdade e do
abraço.
Nada de rascunho! Nunca um fato histórico se transformou tão bem num abraço.
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