segunda-feira, 27 de março de 2017

HISTÓRIAS LÚDICAS PARA CRIANÇAS ABANDONADAS

Tem dias que não sei o que se passa. Só abrindo um Aleister Crowley ou o Livro Negro de São Cipriano.
Sexta-feira, durante a noite, recebo a visita de uma casal de amigos, de quem gosto muito, e uma amiga, da qual gosto muito também. Íamos sair, mas resolvemos ficar aqui em casa, nos entupindo de cerveja. Com a cerveja, ou sob os efeitos dos componentes geneticamente modificados, todas as nossas histórias bizarras foram surgindo. Fomos desfilando histórias, das situações mais ridículas até as mais escabrosas. Algumas vividas em conjunto, outras em atuação solo. Muita risada. Tanta risada que, muitas vezes, me espanto de ainda haver alegria no mundo. Mesmo com cerveja.
Determinada hora o casal resolve ir embora, pois ele iria trabalhar no sábado que já estávamos nele. A amiga resolve ficar.
Aí eu não sei se foi meu cérebro convertido em transgênico ou sua parcela lesada por décadas de mau uso, meu mundo caiu! Passei toda madrugada, até o horário do almoço, ouvindo histórias que cogumelo, ou ácido, algum jamais ousaria me proporcionar.
Imagine três Exus, vestidos de preto, aos pés da sua cama. O do meio, com a parte interna da capa em vermelho, sem rosto. O cenário é um quarto pequeno e cheio de bolor. Então, repentinamente, o Anjo Gabriel invade o local, destruindo tudo com as enormes asas brancas. Sim, ele de branco e resplandecente. Também derrota os Exus e traz a paz para o quarto todo destruído.
Em seguida, explicando sua conexão profunda, no dia da morte do Raul Seixas, sem que soubesse do fato, ela, de alguma forma inexplicável, cochichou ao ouvido dele que seria a responsável pela continuidade e divulgação da sua obra. Ela viu Raul chorar. Ele apanhou uma lágrima e depositou nas mãos de uma amiga dela, que foi junto nessa aventura espiritual.
Sim, ela esteve com os Hare Krishna. Foi proibida de cantar os mantras, pois não tinha a vocalização correta. Deram a ela cymbals para que tocasse. Quando começou a tocar, uma enorme pomba branca ficou voando sobre sua cabeça, resplandecente. Em um outro dia os devotos alaranjados foram até sua casa e, em determinado momento, resolveram dar um banho, no chuveiro, na imagem de Krishna. Depois, já de banho tomado, levaram até o centro da sala, onde miraculosamente mudou os tons pastel para um colorido vivo, emitindo luzes. Óbvio, resplandecentes.
De histórias e luzes resplandecentes em resplandecentes luzes e histórias, fiquei ali calmamente ouvindo, meio atordoado, talvez ainda meio chapado, fazendo um cafuné em sua cabeça. De repente, não mais que de repente, ela se agita toda.
- O que foi? Perguntei intrigado.
- Tive um orgasmo!
- Cósmico? Perguntei, ainda intrigado.
- É... Acho que sim!
Depois disso, ainda queria me levar pra fazer uma operação espiritual na minha querida hérnia de disco. Ah, tive que botar o pé no chão e ficar consciente de que tem um governo golpista a ser combatido e derrubado e, por fim, a derrocada de todos os governos.
Hasta la victoria. Siempre!

DAS INTENÇÕES

- Desculpe-me, foi sem querer!

Quantas vezes, contraditoriamente, proferi essa frase em relação a alguém. Contraditório, pois sempre deixava as pessoas muito irritadas comigo, quando se dirigiam a mim dessa forma, após alguma ação que entendiam me incomodar.

- Não desculpo. "Sem querer" eu não desculpo. Só desculpo, ou não, se houver um propósito. Sem propósito, é imperdoável.

DE POETAS, FOTÓGRAFOS E REVOLTADOS

Parece que hoje foi o dia da poesia, ou do poeta, sei lá. Passou praticamente desapercebido, o que é muito bom.
Anos atrás foi uma epidemia de poetas. Qualquer lugar onde seus olhos queriam descansar surgia um poeta. Ser poeta, assim como ser artista, é uma coisa que passa.
Mas nem tudo melhorou com o fim dos poetas em pencas. Com a popularização das câmeras digitais, eis que somos soterrados pela avalanche de fotógrafos. O mundo coloriu de finais de semana puerís. Quase supliquei pela volta dos poetas, vê se pode!
Assim como os poetas, os fotógrafos de álbuns de películas transparentes também sumiram.
Hoje posso ver bons poetas e bons fotógrafos sossegadamente, sem o bombardeio de ocasião.
Com isso na cabeça, fiquei me perguntando sobre esse momento. Afinal, onde estão todos aqueles poetas e fotógrafos? Depois de dar uma olhada em minha timeline, não foi difícil descobrir:
Hoje todo mundo é de esquerda. O Temer conseguiu isso. Até tenho medo que ele caia e tudo volte ao estágio anterior.

ASSIM

Tudo seria tão simples se não ficassem tentando simplificar tudo.

OPUS 01

Ontem comecei a fazer uma música que me pede exasperadamente uma letra. Nada do que tenho escrito me pede uma música. Viver é uma espécie de sobrevivência na incompletude.

GPS 3 - A BATALHA FINAL

Acho louvável o esforço que as pessoas fazem, por quaisquer métodos, profissionais ou xamânicos, para encontrar o seu eu profundo. De minha parte, prefiro continuar perdido. Perdido as possibilidades se ampliam, são infinitas.

GPS 2 - A MISSÃO

Já me encontrei onde estou perdido.

HUMMMMM...

- Ru, onde está doendo?
- Não sei... dói em silêncio!

PERDAS & GANHOS

Tenho um aparelho de TV antigo na sala da minha casa. Faz mais de 2 anos, acredito, que não o ligo. Ontem, pela primeira vez, pensei em jogá-lo fora. Refleti. Esteticamente vai ficar um buraco na estante e, depois, vou perder uma referência daquilo que não estou perdendo.

CONTATOS MOLOTOV

Toca o telefone e atendo do meu jeito habitual, herdado da minha mãe:
- Pronto!
- Oi, Rubinho, aqui é a Fulana.
- Oi, Fulana, tudo bem?
- Tudo bem... quando vocês vão tocar?
- Vamos tocar na quarta-feira, lá na chácara da SABESP.
- Porra, que legal! na quarta-feira minha mãe vai levar ao psiquiatra, aí no Juqueri, pra garantir que estou bem, e aí vou ver vocês.
- ... (?) Pô, legal!
- Aquele dia que a gente se despediu eu só te dei um beijo, agora estou mandando dez...
- ... (?) Ah, legal, dez pra você também!
Puta que pariu, tem hora que eu penso que estou vivendo em um manicômio psicodélico.

PARE. OLHE. OBSERVE. PENSE!

A defesa cega de qualquer causa está alicerçada na ignorância... e a ignorância é a mãe de todas as opressões.

UM VIVER BIG BROTHER

Na absurda década de 1970 o Centro Cultural de Franco da Rocha era bem agitado. Nós, a turminha de Caieiras, como éramos chamados, passamos a frequentar assiduamente o espaço. Atividades a mil ali dentro: música, teatro, feiras, cursos e muitos encontros e discussões.
Quantas vezes chegávamos ali de manhã e só íamos embora no dia seguinte. Nada ali fazia com que a gente se ressentisse do cansaço.
Um dia, o pessoal por ali bundando, sem uma atividade específica, ficamos cantando e tocando violão, sentados no palco. Quase todos os frequentadores habituais estavam por ali, fazendo uma coisa ou outra. Entre tantas músicas, começamos a cantar Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores, do Vandré,
- Parem de tocar isso. Não podem tocar isso!!! um grito agressivo que parecia vir do quinto dos infernos, atravessou o Centro Comunitário inteiro. Silêncio geral.
Olhamos em direção ao grito e estava aquela mulher parada no meio do salão. De punhos cerrados, com os braços ao longo do corpo, nos olhando como quem queria nos arrebentar.
Era aquela mulher, não me recordo o nome, muito simpática e sorridente, que passava o dia ali com a gente, conversando, brincando e participando das atividades.
Mais tarde soubemos que era uma agente infiltrada do DOPS.

FEMUCA - FESTIVAL DE MÚSICA DE CAIEIRAS

Quando foi anunciado o festival, que aconteceria entre o final de 1979 e começo de 1980, acirrou uma cisão que já vinha ocorrendo na turma. Era uma bobagem infantilóide calcada em supostos gostos musicais. Havia uma parcela da turma que se proclamou defensora do bom gosto musical. Só ouviam Chico Buarque, Edu Lobo ou Milton Nascimento. Não havia espaço para quem gostasse de Caetano, Gil e rock, parcela onde eu e meu irmão estávamos encaixados. Era tão idiota, que acreditavam que, com o nosso gosto, seria impossível que pudéssemos gostar daquilo que eles gostavam.
Com isso cada qual resolveu fazer sua música e montar seu grupo. Musicalmente, eu e meu irmão ficamos de fora. Resolvemos não participar do tal festival, pois não havia gente pra montar uma banda.
Conversa vai e conversa vem, alguém deu o toque de um guitarrista que morava perto de casa. Não o conhecia. Era o Darci, um mecânico de automóveis, super fã da Jovem Guarda e do Roberto Carlos. Nisso ele indicou um parente dele que poderia tocar contrabaixo. Era um garoto chamado Gersinho, atual prefeito de Caieiras. Trouxeram o Luciano, que tocava bateria e trompete, complementamos com meu primo Rogério e o Bahia na percussão, o Tonho no violão e a Dora e Angela, irmã da Carmem e do Dudé, nos backing vocals. Eu no violão de 12 cordas com um pedal wha-wha, meu irmão e o Mário Barnabé nos vocais.
Tínhamos consciência das limitações do nosso grupo e optamos por uma apresentação de impacto e com um arranjo ousado. Tínhamos que apostar na criatividade. Isso para a música aprovada, pois a segunda foi censurada pelos versos: Digo agora dessa gente / Que aceita de mão beijada / A civilidade do povo / Que também é militarizada. Música minha e do meu irmão.
A música que passou era “As Mágoas do Rio Juqueri”, que fiz em parceria com o Marcos. Originalmente essa música tem uma levada meio dixieland, um jazz meio primitivo. Com essa formação da banda, viramos a música do avesso: uma percussão afro pesada, com tumbadoras, atabaque e bongôs, as meninas fazendo um backing lisérgico e alucinadamente sensual, na frente a androginia provocante do Kaká e do Mario. O lado mais rock ficava comigo, o Darci e o Gersinho. Quando descobri que o Luciano, baterista, tocava trompete, ampliei o arranjo. No meio da música parava tudo e só ficava o peso da percussão e bateria. Aí o Luciano levantava, só marcando o bumbo com o pé e fazia um super solo de trompete. Isso arrebentou.
Desde a primeira eliminatória foi um puta sucesso. Alguns detalhes ajudaram muito. Coisas que ninguém pensava. Xerocamos a letra, com uma ilustração minha, e distribuíamos para todo público, em todas as 3 eliminatórias. Todo mundo cantava junto. No lugar do tradicional 1, 2, 3 pra começar a música, as meninas gritavam JU-QUE-RI. Acabou virando grito de guerra do público, cada vez que entrávamos. Ah, antes do grito, a Dora contava uma historinha sobre o significado da palavra Juqueri, nome indígena para a planta conhecida como Dorme-Maria, comum aqui na região.
Por outro lado, a apresentação acabou chocando os conservadores, gente ligada a organização do festival e prefeitura. Aliás, um júri incompetente, formado por mulher de prefeito, filha de não sei quem e por aí afora. Só chegamos até a final por força do público que a gente garantia, concorrendo ao troféu de melhor torcida com a banda do Mário Rizardi.
A coisa aconteceu de maneira muito esquisita. Todos os concorrentes tinham que chegar ao Centro Esportivo com bastante antecedência. Cada grupo ficava instalado em uma das salas do local, não podendo sair. Eles serviam lanches, mas, nas três apresentações, quando chegava nossa vez, o lanche acabava... rs rs rs... No entanto, eles proibiam bebidas alcoólicas, mas sempre entramos com garrafas de vodka e conhaque.
Na final, estávamos na sala aguardando nossa vez, quando entra um funcionário da prefeitura e diz que um primo meu havia sido preso e estava pedindo pra gente ir até a delegacia para soltá-lo. Bom, decidimos que iríamos até lá, embora custasse nossa desclassificação. Por sorte, já na porta, prontos pra sair, passa um amigo nosso, o Davi, e conto o que estava acontecendo.
- Mentira. Acabei de encontrar seu primo agorinha ali na frente.
Não preciso dizer mais nada, né? Finalizando: ninguém do bom gosto musical chegou até a final. Acabamos ganhando, como consolo, o troféu de “Melhor Torcida”, que recusei e entreguei para o Pururuca, um garoto que organizou a meninada. O vencedor foi um menino, acho que com uns 7 anos de idade, cantando alguma coisa nos moldes do sertanejo romântico. O segundo lugar ficou com uma dupla sertaneja e o restante não me lembro.
Muitos outros detalhes acabei deixando de fora, pois a coisa iria ficar extensa. Mas é por aí.

GPS

Onde estou aqui?

MEMÓRIAS QUE VIRARAM FUMAÇA E A SUTRA DO GIRASSOL

Fomos visitar uma vila muito suspeita, em São Paulo, e voltamos de trem com um pacote, que só continha sonhos juvenis, embrulhados em jornal.
Antes de cada um ir pra sua respectiva casa, resolvemos descansar os olhos atrás do cemitério de Caieiras. Não me lembro de todos, mas, com certeza, estava o Nelson, o Emi, o Zé Antonio (Zé Body, pra não confundir com outro Zé Antonio frequentador da turma), o Rogério e eu.
Ali, entre a paz dos mortos e do verde, repentinamente surge a baratinha da polícia militar, invadindo, tal qual pesadelo, nossos sonhos.
O Nelson, talvez temendo que os policiais se atualizassem com as notícias do jornal que envolvia o pacote, lépido, jogou-o, por cima do muro, dentro do cemitério.
- Ele jogou a ponta dentro do cemitério... entra lá e procura a ponta, gritava um dos policiais, que, provavelmente, era o mais graduado.
Enquanto aquele procurava a ponta, outros dois providenciavam a blitz. Revistam daqui, revistam dali e encontram o famoso colírio Moura Brasil em um dos bolsos do Emi.
- O que é isso? Perguntou o policial.
- É remédio pra dor de dente! Respondeu o Emi, talvez o cara mais sossegado e cínico que já conheci.
- Então você vai morrer de dor de dente! Argumentou o vitorioso e valoroso soldado ao jogar fora a bisnaga de colírio.
Nesse meio tempo, o PM que procurava a ponta retornou.
- Não, ele não jogou a ponta, ele engoliu!
Fomos levados à delegacia, onde ficamos detidos algumas horas. Por sorte, uma garota que era nossa vizinha foi visitar seu namorado, um investigador, e, nos vendo lá, intercedeu a nosso favor alegando que éramos gente boa. Após um sermão, e sem tapas, fomos liberados.
Voltamos ao cemitério para resgatar as notícias. Lá estava o jornal aberto ao céu, feito um girassol, expondo todo seu conteúdo.
Ah, como não lembrar A Sutra do Girassol, do Allen Ginsberg.

UNE SAISON EN ENFER

Não há dia sem que, toda hora e qualquer instante, tenha que descer ao mais profundo e obscuro dos meus infernos.
Não há descer ao profundo e obscuro inferno sem que eu tenha que desalojar invencíveis demônios de sua residência fixa. 

Para cada despejo criar novos cadeados e novas fechaduras para impedi-los à comodidade de um lar.

Cada demônio invencível e residente que enfrento e expulso, o Medo, a Prepotência, o Preconceito, a Ignorância e a Presunção tem sua gazua.

Não há dia em que invencíveis demônios não invadam meu obscuro inferno, reclamando eterna residência.

Não há dia sem que, toda hora e qualquer instante, tenha que descer ao mais profundo e obscuro dos meus infernos.

EU: QUASE MORADOR DA DELEGACIA

Durante a reforma partidária e, logo mais próximo às eleições de 1982, eu ocupava o cargo de secretário no diretório municipal do Partido dos Trabalhadores, em Caieiras.
A gente nunca sabe ao certo como funciona o processo da inteligência da repressão, caso haja alguma. Não sei se pelo cargo, que de certa maneira tem uma importância estratégica, pois é quem está com as informações do partido; não sei se em função do presidente, cargo mais alto do diretório municipal, ser popularmente conhecido por seu espírito simpático e conciliador e, não sei se por sorteio, fui escolhido pelo delegado de polícia, de Caieiras, como bode expiatório.
Sem exagero, toda semana uma viatura parava na porta da minha casa pra me levar até a delegacia. O tal delegado queria conversar comigo. A vizinhança já achando que eu era um bandido.
Sempre me recusei a entrar na viatura. Procurava descer mais tarde e ir em companhia de alguém, pra não facilitar. E esse alguém era a, então, minha esposa, Marli, ex-presa política durante a ditadura. Embora esse caso fosse levado ao diretório, o PT de Caieiras, como um todo, nunca se manifestou ou tomou qualquer atitude, preocupados que estavam com suas campanhas para prefeito e vereadores.
Bom, voltando: a cena na delegacia era grotesca e surreal. O delegado, aquele mesmo do caso Raul Seixas, ficava um tempão, em silêncio, olhando pra minha cara. Eu, em silêncio, olhando pra cara dele. Aí ele olhava para um quadro na parede, que tinha o retrato de um soldado, e voltava a me olhar. Em silêncio. Eu olhava, em silêncio, para o quadro e depois, novamente, para o delegado. Após longo tempo nessa masturbação sem gozo, ele me perguntava:
- Sabe quem é esse?
- Não!
- É um policial morto por terroristas!
-???????? Meio que dava de ombros. Seria tão imbecil quanto se tentasse responder uma bobagem desse porte.
Isso se repetiu não sei quantas vezes. Nem sempre o retrato era o assunto, mas o terrorismo era preponderante.
Até que um dia sou chamado, desço pra delegacia com a Marli, e o delegado não está. Quem veio conversar comigo foi um capitão da polícia militar. Era um sujeito de modos delicados, simpático e que nunca andava armado. Fiquei conversando com ele, tentando descobrir as intenções do delegado.
- Na verdade, o que nós queremos é uma relação com os nomes de todos os filiados do Partido dos Trabalhadores.
- Olha, capitão, nós somos um partido legal e pra conseguir os nomes basta ir até o Cartório Eleitoral, no Fórum, em Franco da Rocha.
- Sabe como é... é muita burocracia. Você poderia facilitar pra gente...
- Me desculpe, mas não vou dar o nome de ninguém, pois quem criou essa burocracia é o Estado que o senhor defende. Se nós a enfrentamos para criar um partido, vocês também podem enfrenta-la para conseguir os nomes.
Nessa hora a Marli já estava desesperada com a minha atitude e ficava me beliscando. Mas quando me voltei para o capitão e disse que tinha mais uma coisinha a dizer, a Marli, me conhecendo bem, empalideceu.
- Sabe o que é, capitão, o presidente nacional do nosso partido está sendo processado pela Lei de Segurança Nacional e eu estou achando que vocês também querem me enquadrar. Falei com o melhor da minha ironia.
- Pelo amor de Deus... Imagina... eu jamais faria isso com você. Não se preocupe, não é essa a nossa intenção.
Faltou pouco pra gargalhar na cara do capitão. Saindo dali eu ria muito, enquanto a Marli repetia:
-Seu filho da puta, tinha que provocar, né? Você é um filho da puta!

LEMBRANÇAS ESMAECIDAS EM MEMÓRIA RAM

Lá pelo fim da década de 1980 e começo da de 1990, não me recordo o que o Paulo Maluf estava fazendo. Não sei se estava em algum cargo público, ou se era candidato, sei lá, de qualquer forma não era coisa boa.
Conversando com meu cunhado, à época, resolvi fazer um desenho. Desse desenho resolvemos fazer umas camisetas e adesivos para automóveis.
Não tenho mais o desenho, mas era uma caricatura vampiresca do Maluf, dentro de um cálice transbordando sangue. Atrás, como raios resplandecentes, os pecados e crimes do sujeito. Uma frase bem grande terminava o desenho: Pai, afasta de mim esse cálice!
Quem fez a tela e a impressão das camisetas foi o Gleiton.
Deixamos um lote grande de camisetas na antiga loja de produtos do PT, na região da Praça da Sé. Outro tanto era vendido em comícios e manifestações.
Dias depois o PT nos encomenda um segundo lote. Preparamos as camisetas e adesivos e fomos, o Edson e eu, pra lojinha do PT. Quando estávamos entrando com aqueles pacotes nas costas, a garota responsável pela loja, vem correndo em nossa direção e gritando:
- Some daqui. Corre! A polícia (não lembro se federal) invadiu a loja e apreendeu o que tinha sobrado e agora está atrás de vocês.
Fiquem na moita e não liberem esse material. Some daqui!
E vamos nós dois correndo com a pacoteira nas costas, mas deu tempo de chegar até o Vale do Anhangabaú, onde acontecia um comício do PT, e vender algumas camisetas e adesivos, por pura irresponsabilidade... rs...
No final, pra amenizar o prejuízo, um deputado arrematou as camisetas e um sindicato ficou com os adesivos.

POEMA JATO

Por mais citados que sejam, poetas nunca são punidos.

DAS RELAÇÕES DEMOCRÁTICAS

Meu amor, qual de nós dois é a maioria?

DAS RELAÇÕES HUMANAS

Seguimos trocando carícias por carências.

DAS MATILHAS

Quanto mais próxima sua ascendência for o lobo, mais saudável é o cachorro. Exceção ao homem em pele de cordeiro.

ALÔ

Em tele fonemas não há alofones!

RADICAL

No quesito alimentação ando tão natural que, se der um passo à frente, vou virar vegano... se der um passo atrás, me transformo em evangélico, o que vem dar no mesmo!

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

PROTOCOLOS EXISTENCIAIS Nº 28

SANTÍSSIMA TRINDADE NO SISTEMA BINÁRIO

Quando o primeiro, insistentemente, justifica pra você os atos do segundo, você não é o terceiro: você está fora do jogo!  

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

ME DÁ UM TECO?!

Alguém já disse que a filosofia e a literatura são as piores coisas para a poesia. Para alguém que, como eu, acredita que poesia não é literatura, muito menos filosofia, concorda plenamente com isso, embora nem todos tenham essa concepção. No entanto, penso aqui: o que é pior para a literatura, para a filosofia e para a poesia?

Questionando-me sobre os três casos, acabo incluindo mais um item. A História. Todo aquele que tem um interesse mais sério em História, acaba entrando em confronto com o ensino oficial da mesma. Não apenas por apresentar a versão dos protagonistas vencedores, mas, principalmente, por nos impingir fatos isolados. Nada pior para a História e seu entendimento que o retalhamento em pequenos pedaços, como se não houvesse qualquer conexão entre eles.

A História, sempre a História, vai me dando certa luz sobre a eterna sombra que se abate sobre a Poesia, a Literatura e a Filosofia. Em um primeiro momento identifico a falta do conhecimento histórico, a falta de leitura ou leitura superficial, seguida pelo entendimento risível, resultando, por fim, na cultura de retalhamento das obras.

A facilidade do mundo virtual expandiu de forma quase doentia essa superficialidade. Tornamo-nos clientes assíduos das seletas filosóficas, dos açougues poéticos e dos armarinhos de literatura. Como estripadores vamos desconectando órgãos, ossos e vísceras de um conjunto, denominado corpo. Tornamos inútil cada pedaço, cada parte sem sua função no todo. Matamos o todo.

A vaidade vai nos tornando grandes citadores de nomes, que mal conhecemos, e frases fora de seu contexto original. Somos todos a aparência do conhecimento. Sedutores do conhecimento rasteiro. Glorificação da ignorância mascarada. Portadores da preguiça fantasiada.

Sabemos que essa vaidade não resiste a duas perguntas, ou mesmo uma. Sabemos, mas quem se importa? Apenas querem seu pedaço.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

CONSIDERAÇÕES MISERÁVEIS 27

Por mais que eu proclame minha indecência, sempre serei réu da minha inocência.

PROTOCOLOS EXISTENCIAIS Nº 26

Chega! Basta de expor a nudez da minha indignação. Não quero mais que as vísceras da minha felicidade sejam revolvidas em açougues públicos. Que finde a necropsia da minha alma. Não mais exumarão o cadáver dos meus fracassos.

Eu sou o fato. Regalem-se com os restos.

Não mais me oferecerei em holocausto para famélicos da sordidez. Não mais norte. Não mais mote. Basta de penhor genético. Desassociar-me dos eventos. Tempo e espaço. Manter o caos recalcitrante cagando para as normas mesquinhas .

Eu sou a foto. Regalem-se com os rostos.

Chega! Basta de fartura. Basta de cultura. Basta de ruptura. Quero apenas a rua entre nuvens e asfalto. Quero a rua sem séquitos de sexos embotados na minha poesia. Não mais quero suas fantasias.

Eu sou o farto. Regalem-se com os ritos.

Chega! Basta de hipocrisia saudável. Não quero mais a salutar felicidade de mãos que nunca se apertam. Retiro um a um os parasitas da minha franqueza: franquia de exultação. Não mais assinatura em contratos invisíveis.


Eu sou o reles. Regalem-se com os fardos. 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

CONSIDERAÇÕES MISERÁVEIS 26

CRISE DE IDENTIDADE:

Ser selfie de ficção ou de celebridade?

RECIFE 1978 - Segunda parte

Tereza morava com a família em um quase casebre enfiado no meio do mato, na periferia da cidade de Olinda. Fui ali uma ou duas vezes. Depois que chegamos a Recife, Tereza praticamente não saía de nosso apartamento.

Um dia ela começa a nos falar sobre uma tal de Árvore de Jurema e ficou insistindo para nos levar até lá. Onde a memória me permite distinguir, ficava no caminho do município de Paulista. Resolvemos ir. Eu, meu irmão, Rogério, Nelson e Mário.

Atravessamos uma mata e chegamos a um descampado com um córrego de águas cristalinas e seixos lindíssimos. Cruzamos o córrego. Tereza disse que, antes da Árvore de Jurema, nos levaria para conhecer o padre Cícero. Olhamo-nos, já estranhando a situação.

Padre Cícero era uma árvore frondosa, muito larga. Haviam lascado uma grande parte dela e pintado a figura do líder religioso do nordeste, com o tamanho aproximado de uma criança de 10 anos. A parte esquisita da história ficava por conta das inumeráveis perfurações à bala na cabeça, mãos e coração da pintura. Eram tantos tiros que essas partes do corpo haviam desaparecido. Tereza nos garantiu que durante a noite podia-se ouvir o barulho dos disparos, mas ninguém sabia quem era o responsável.

Seguimos adiante, até onde a mata se fechava completamente. Não havia qualquer sinal de trilha, nada que indicasse que pessoas penetrassem naquela muralha. Adentramos naquele emaranhado de árvores, mato, galhos e cipós, liderados pela Tereza. Finalmente chegamos à Árvore de Jurema.

Era um descampado, em forma de círculo, com uns 20 metros de diâmetro, no meio da mata. O entorno era mata fechada, sem qualquer sinal de que algum humano tivesse chegado ali. Ao centro, a Árvore de Jurema. Algo parecido com o cacaueiro. Sem um tronco aparente e os galhos brotando em diversos pontos do círculo. O chão desse círculo, sem qualquer outra planta, estava totalmente coberto de tocos de velas pretas e vermelhas. Não era possível ver o chão sob aquela espécie de asfalto rubro negro. Tereza também nos garantiu que ninguém sabia nada sobre os possíveis frequentadores daquele local, nem como sabia da sua existência.

Por mais cético que possamos ser não há como não sentir um frio percorrendo a espinha. Em silêncio saímos rapidamente do local.

Na volta resolvemos parar no córrego de águas límpidas e nos agachamos para pegar alguns seixos. Por alguma razão olhamos para trás, de onde tínhamos vindo. Ali, uns 10 metros da gente, um sujeito enorme, que lembrava muito o cantor e compositor Dominguinhos, com uma espingarda, ou rifle, apontando pra nossas costas. Não disse uma palavra.

Levantamo-nos muito lentamente e lentamente fomos nos afastando. Ele imóvel, apontando a arma em nossa direção. Assim, de forma muito lenta saímos do seu campo de visão e, claro, do alcance de um possível tiro.

Nunca comentamos, entre nós, sobre essa experiência. Acho que todos vivenciaram algo parecido com o que eu vivenciei: a possibilidade de uma morte onde ninguém jamais saberia que estávamos mortos.

Nunca indaguei a Tereza pra entender o que ela representava naquilo tudo. Quem era aquele homem armado, tão próximo da gente e não percebemos sua presença?


Estando sozinho o efeito da maconha até poderia justificar, mas em grupo, só alucinação coletiva.

RECIFE 1978 - Primeira parte

Em 1978 decidimos ir embora pra Recife. Era um bando formado pelo meu irmão Carlos, meus primos Nelson e Rogério, o Mário e eu. Meu primo Sidnei já estava morando lá.

Ficamos morando no centro de Recife, em um apartamento na esquina da Av. Boa Vista e a Rua do Hospício. Cenário que ressoava os passos soturnos do poeta Augusto dos Anjos.

Como chegamos com aquele aspecto ripongo, armados de violões e outros instrumentos musicais, rapidamente o apartamento transformou-se em ponto de encontro dos malucos de Recife. Músicos, junkies, hippies, gays e lésbicas abarrotavam o apartamento de três cômodos.

Lembro-me com muito carinho da Marta, garota lésbica, que largou a família para morar com a gente e de Tereza que, em início de gravidez, tornou-se minha companheira.

Não me recordo de onde foi proveniente e nem com qual intenção, alguém levou um saco, sim, um saco de uns comprimidinhos, de cor entre azul e violeta, que eram usados como “sossega leão” nos internos agressivos do Hospital Psiquiátrico do Juqueri. Ninguém tinha interesse em consumir aquilo e eles ficaram por ali.

Havia uma junkie, no sentido mais profundo da palavra, chamada Maga, que frequentava habitualmente o apartamento, com uma amiga que já não lembro o nome. Um dia ela descobre os malditos comprimidos. Vai ao banheiro e dissolve um deles com a água da pia, em seguida, com uma seringa, aplica na amiga. Depois, sem exagero ou figura de linguagem, dissolve 12 comprimidos e se aplica. Fui para o quarto com ela e o Rogério com a amiga. O restante da cambada ficou na sala.

Depois de algum tempo o Rogério percebe que a menina está passando mal. Foi aquele desespero. Meio desmaiada, pálida e vomitando. Puta overdose. A Maga, com os 12 comprimidos nas veias, tomou conta da situação e, com nossa ajuda, conseguiu fazer com que a garota se recuperasse e, o mais inacreditável, levou a amiga, ainda meio cambaleante, para casa. Por pouco as consequências não foram trágicas. Alguém deu fim naquela porra.

Drogas, ali, eram tão fartas quanto baião-de-dois ou macaxeira com carne seca. Maconha, cogumelo de zebu ou mesmo LSD, que um inglês, morador do sexto andar do mesmo prédio, tinha em estoque. Nunca chegamos conhecer o tal inglês, apenas seu companheiro, Marquinhos, um surfista carioca. Gente boa pra caralho.

Nosso apartamento ficava no quarto andar, com vista para a Avenida Boa Vista, uma das principais de Recife. Durante horas ficávamos na janela observando a movimentação maluca daquele lugar. Era cego, com barraquinha e tudo mais, vendendo maconha em plena luz do dia. Era policial roubando a maconha do cego e sair correndo. Tudo muito absurdo para nós então.


Foi ali, em uma livraria, próxima ao prédio onde morávamos, que comprei o livro América, do Franz Kafka. Poderia ser Uma Temporada no Inferno, do Rimbaud, mas acho que nada fazia sentido.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

ATUALIZAÇÕES

Excetuando-se alguns eventos, datas comemorativas e velórios, os supermercados é que promovem, como mercadorias com prazo de validade a vencer, nossa mais autêntica atualização com o passado.

Em um corredor, cercado de um lado por pacotes de café e caixas de coadores de papel, de outro por biscoitos e chocolates, após longo tempo, nos encontramos.

Por segundos, sem reação, nos olhamos. Finalmente um beijo e um abraço carinhoso.

Nesses segundos, mais rápido que a percepção de que ela envelhecera, foi poder estar em seu olhar e ver que eu, até então, ainda era o passado em sua memória. É mais ou menos como atualizar seu Windows para a versão 10 e perceber que a 7 era melhor.

Depois do abraço apenas um “tudo bem com você?” e “comigo tudo bem!”.


Não sei o quanto podemos acreditar um no outro. De minha parte é muito rejuvenescedor poder ainda usufruir dessa percepção.