segunda-feira, 27 de março de 2017

EU: QUASE MORADOR DA DELEGACIA

Durante a reforma partidária e, logo mais próximo às eleições de 1982, eu ocupava o cargo de secretário no diretório municipal do Partido dos Trabalhadores, em Caieiras.
A gente nunca sabe ao certo como funciona o processo da inteligência da repressão, caso haja alguma. Não sei se pelo cargo, que de certa maneira tem uma importância estratégica, pois é quem está com as informações do partido; não sei se em função do presidente, cargo mais alto do diretório municipal, ser popularmente conhecido por seu espírito simpático e conciliador e, não sei se por sorteio, fui escolhido pelo delegado de polícia, de Caieiras, como bode expiatório.
Sem exagero, toda semana uma viatura parava na porta da minha casa pra me levar até a delegacia. O tal delegado queria conversar comigo. A vizinhança já achando que eu era um bandido.
Sempre me recusei a entrar na viatura. Procurava descer mais tarde e ir em companhia de alguém, pra não facilitar. E esse alguém era a, então, minha esposa, Marli, ex-presa política durante a ditadura. Embora esse caso fosse levado ao diretório, o PT de Caieiras, como um todo, nunca se manifestou ou tomou qualquer atitude, preocupados que estavam com suas campanhas para prefeito e vereadores.
Bom, voltando: a cena na delegacia era grotesca e surreal. O delegado, aquele mesmo do caso Raul Seixas, ficava um tempão, em silêncio, olhando pra minha cara. Eu, em silêncio, olhando pra cara dele. Aí ele olhava para um quadro na parede, que tinha o retrato de um soldado, e voltava a me olhar. Em silêncio. Eu olhava, em silêncio, para o quadro e depois, novamente, para o delegado. Após longo tempo nessa masturbação sem gozo, ele me perguntava:
- Sabe quem é esse?
- Não!
- É um policial morto por terroristas!
-???????? Meio que dava de ombros. Seria tão imbecil quanto se tentasse responder uma bobagem desse porte.
Isso se repetiu não sei quantas vezes. Nem sempre o retrato era o assunto, mas o terrorismo era preponderante.
Até que um dia sou chamado, desço pra delegacia com a Marli, e o delegado não está. Quem veio conversar comigo foi um capitão da polícia militar. Era um sujeito de modos delicados, simpático e que nunca andava armado. Fiquei conversando com ele, tentando descobrir as intenções do delegado.
- Na verdade, o que nós queremos é uma relação com os nomes de todos os filiados do Partido dos Trabalhadores.
- Olha, capitão, nós somos um partido legal e pra conseguir os nomes basta ir até o Cartório Eleitoral, no Fórum, em Franco da Rocha.
- Sabe como é... é muita burocracia. Você poderia facilitar pra gente...
- Me desculpe, mas não vou dar o nome de ninguém, pois quem criou essa burocracia é o Estado que o senhor defende. Se nós a enfrentamos para criar um partido, vocês também podem enfrenta-la para conseguir os nomes.
Nessa hora a Marli já estava desesperada com a minha atitude e ficava me beliscando. Mas quando me voltei para o capitão e disse que tinha mais uma coisinha a dizer, a Marli, me conhecendo bem, empalideceu.
- Sabe o que é, capitão, o presidente nacional do nosso partido está sendo processado pela Lei de Segurança Nacional e eu estou achando que vocês também querem me enquadrar. Falei com o melhor da minha ironia.
- Pelo amor de Deus... Imagina... eu jamais faria isso com você. Não se preocupe, não é essa a nossa intenção.
Faltou pouco pra gargalhar na cara do capitão. Saindo dali eu ria muito, enquanto a Marli repetia:
-Seu filho da puta, tinha que provocar, né? Você é um filho da puta!

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