quinta-feira, 27 de outubro de 2016

FALANDO DE VERA

Vera é onde sou incompleto.

Todos meus relacionamentos amorosos sempre me trouxeram uma sensação de saciabilidade, seja pelo que eu tenha recebido ou dado, ou ainda, pelo encerramento natural de um ciclo. Isso faz a perfeição das relações, com todos seus altos e baixos, onde não existe uma ruptura abrupta e dramática, mas o entendimento de que ali se encerrou em si próprio.

Ainda que tenha muito a aprender, meus amores foram os motores do melhor que hoje sou. Cada um, no seu devido tempo, sem cair na armadilha das comparações, me deu seu melhor. Cada um, com os meus limites na ocasião, me proporcionou uma experiência e um aprofundamento emocional, intelectual e humano que foi me fortalecendo a cada fraqueza, vacilo ou idiossincrasias expostos.

Essa compreensão natural de que sentimentos se transformam não significa um fim, um desapego, ao contrário, abre-se a perspectiva de sentimentos outros, de relações outras. Nisso são completos. Isso é que eu amo em cada um deles, com o melhor que pude amar cada um deles. Cada um me fez inteiro.

Vera é um corte. Vera foi com quem vivi uma das mais longas e profundas experiências amorosas.

Quando a morte a tirou dos meus braços, ainda éramos planos e futuro. A ruptura abrupta e definitiva determinou o fim de um ciclo que não pretendíamos. Um ciclo que não se fechou, por ser inaceitável e incompreensível. Brutal.

Vera é onde sou incompleto. Vera é esse vazio que nunca será preenchido.

Nunca procurei preencher esse vácuo. Cada relação foi completa em si. Me odiaria fazer de alguém um substituto para algo que não se preenche. Esse vazio é um compartimento que cabe à Vera. Aos outros amores coube a plenitude.

Ainda assim, Vera permanece onde sempre será uma falta.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

RASCUNHO

Está cada vez mais difícil sustentar um texto na ponta dos dedos. Sem qualquer tato, o texto é apenas testemunha de/do que é improvável.

O texto é apenas um teste do impossível.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

TUDO DE NOVO SOB O SOL

Como um corte, rápido e inesperado, um olho me olha e sangra a insustentável veia de poeta. Sob esse olhar, meu olhar de poeta toca o chão, vergado pelo peso da insuficiência, sem coragem para levantar-se.

Um olhar que denuncia não valer nada ser poeta. Um olhar que vai te buscar lá aonde o poeta não chega. Onde ele nunca está.

Esse olhar busca e emerge o ente capaz da experiência poética, não o poeta. Sem o poeta, o homem está nu. Despojado da máscara torna-se menos macaco cativo. Cativa em ser poesia. Liberto de quem a pretende.

Assim, esse olhar não me exige versos. Me vê diverso. Das rimas fizemos risos. Com as palavras vamos construindo um universo.

Esse novo olhar que me sangra pelo profundo do corte, é o que me deixa mais forte.


Sob esse seu olhar, que me olha, sem alarde, o poeta renasce.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

DESCAMPAMENTO

Havia muito tempo que quase todos os entes da floresta haviam desaparecido. As criaturas, segundo diziam, já não brotavam mais das sementes e das nuvens, não corriam nas águas e o sol agora apenas iluminava e aquecia... a lua e as estrelas nada mais diziam, nem mais eram guias.
Os entes criadores, ouviu, agora estavam inalcançáveis.

Era uma vez um certo dia.
- Fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... uh, uh... tudo tá disandano prá ditrais! num vejo além di eu puraqui.
- Fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... fiiiiiiiuuuuuuuuuuuuuuu... assoviava o Curupira enquanto falava com a imagem refletida nas águas do rio.
A lua também o olhava dentro das águas.
O roçar das folhagens deixou-o atento e fez com que se voltasse rapidamente. Um vulto surgiu de dentro da escuridão.
- Caipora? hu hu, sussura o Curupira.
- I soeu... hã, hã... u nogóço tá feio de negociá... hã, hã... ié só nóis doise aqui na mata, falava o Caipora olhando para todos os lados. Os dois mantinham a grande clareira à margem do rio quase desabitada.
- Nus incontro passado já quase num tinha ninguém. Fiiiiiiiiiiiiiiii... Boitatá, Bitatá, baitatá onde ocê tá? Fiiiiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuuuuu... aparece Batatão!
- Num dianta, Curupira, Cobra-de-Fogo apagou... batatá hã hã... si inrolo in si mesma i foi  dismilingüindo intristicida, inté virá fumaça di ardê nus óio. I num é qui si foi na queimada... hã hã... hum hum... e anssim as coisa si vão si sumino.
- Deisdiquê Iara si amufinô tudinha véia i duenti nu fundo du rio as coisa disandaro pra ditrais, lamentou o Curupira. As água cabaro cu’ela qui num cunsiguia mais noivá home bunito. A sujera du rio apagô os óio lindo. Os cabelo cumprido caiu. Fiiiiiiiiiiiiiii... fiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuu... Mãe-d’água... afoga as mágoa di nóis.
- Hã hã... hum hum... o Caipora ficava dando voltas na clareira... u Boto... u Boto...
- Boto sumiu! sussurrou Curupira. Boto largô Mãe-d’água suzinha pra viajá nus lonjão. Caiu nesse mundão... ele véve preso nas água azur prus home apreciá. Foi pur dimais duído pra Iara. Mais duído que a dor do rio.
- Quiqui vai sê das muié virge? agora vai morrê di apanhá! dizqui agora ele virô gorfinho, ganha pêxe na boca... hã hã... hum hum...
Calaram-se olhando o rio banhando a lua.
- Iscuita, Curupira... iscuita. Arguém tá sartando na nossa dereção... apura os orvido...iscuita... hã hã... tão sartando sim!
- Fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuuuuuu... parece danado! quem é ocê qui vem lá?
Do meio das folhagens enegrecidas pelo entardecer salta para o meio da clareira um pretinho de uma perna só e um barrete vermelho na cabeça.
- Sô eu, u Saci! sou eu sim! carma pessoar...
- Vixê, exclamou o Caipora, quiqui deu in ocê di aparecê agora? faizum tempão qui ocê sumiu nesse mundão. Já nem sabia si ocê exeste mais.
Calmamente o negrinho tirou uma baforada do seu cachimbo, ficou olhando ao redor, como se procurasse alguma coisa dele que havia ficado ali. Deu mais algumas pitadas e começou a falar.
- Pessoar, não inxiste mais condição di eu morá no mato, não inxiste não. Deu mais umas baforadas e continuou, agora eu sô criatura dificiente físico, sô sim, e us mato num garante sigurança pras minha condição ispiciar... agora perciso di lugá ispiciarmente perparado. Aquietou-se um instante e prosseguiu:
- Inda maise quieu tenho uns compromisso co Negrim do Pastoreio pelas iguardade raciar... tenho sim. Agora nóis é afro de... des... ara, afroargumacoisa. Maiseu num sei não... das veiz o pretim acende vela prus preto, das veiz acende pra sinhazinha. Acende sim.
Fumando continuamente seu cachimbo... foi andando em direção aos dois.
- Ara essa agora, Saci... pramódique esse bastão? hã hã... hum hum...
- Lá donde moro us home chama de bengala, chama sim, respondeu automaticamente. Pausou um instante apoiado no bastão e continuou, i num é qui aquele pretim ficou mais danado. Dispois qui acismô di sê um tar de cristão, acha tudim. Notro dia, acendeu a vela i incontrô a Mula-sem-cabeça. A danada tava cum nóis i num  instantim disapareceu. Sumiu anssim, ó. Num demorô nadica pra nóis achá a bicha. Tava lá instendida, mortinha da silva nu meio da istrada. U negrim falô qui foi tropelamento, disse qui foi sim.
Curupira e Caipora desviaram seus olhares cheios de adivinhação do olhar do outro. Prosseguiu o Saci.
- Oceis veve incrausurado nu meio desse matão i num sabe du mundão lá fora. Num sabi não. Oceis alembra daqueles bichim qui vinheram lá dos lonjão prum incontro di nóis... faizum tempão. Faiz sim!
- Ôxe, si alembro. Era uns tar di duende, umas tar de fada, umas tar de bruxa... recordou o Curupira. Vixê, isso faizum tempão memo... hã hã.. fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuuuuuuuuu...
- Poisé, falou o Saci, os home capituraro uns exemprar dus bichin, capituraro sim, fizero us bichin procriá... ôxe, quá quá, quá quá... os bichim reproduiz mais qui cueio, sô!  Ispaiaro pra tudo qui é lugá. Eles veve bem mió qui nóis na froresta. Os bichim num passa frio, num passa fome i num corre pirigu ninhum. Os home faiz muita festa preles... argumas veiz eles cunvidava nóis... mais era iscundidim. Si ispaiaro por esse mundão sem portera.
O Curupira olhava para o Caipora e o Caipora olhava para o Curupira e os dois olhavam para o Saci que não parava de fumar seu cachimbo, nem de falar.
- U Lubisome véio agora é cachorro pastor da força púbrica. O disgraçado nem recunhece mais as gente. Os puliça atiça ele in nóis e fiodaputa arreganha os dentão, latindo, e vem mordê nóis. Vem mordê sim. Vixe, vou dize qui dueu nos peito ficá oiando aquele bichão di quatro. Isso dueu.
- A cumadi Mãe-de-Ouro, continuou o Saci na falação, agora num cunsegue mais avuá i nem levá us homi casado pro buraco. Quem é qui vai avuá cuessa sujerada toda? Os buraco virô tudo tuner. Ela tá trabaiando nas rua do porto. Tadinha, tá cabada... duenti. Tem qui pagá pra trabaiá na rua. Tem um tar lá que bate nela. Bate sim.
Parou de falar por um momento e ficou olhando em volta como se nem estivesse vendo os dois ali, estáticos. A cada tragada ficava observando a fumaça que ia desaparecendo na escuridão. Nuvens cobriram a lua.
- Num sei o que vai sê de oceis... num sei não! Murmurou o Saci como para si próprio. Num dianta mais ficá na mata, sô. Ôxe, num dianta memo.
O Curupira e o Caipora ficaram ali prostrados. Com os olhares perdidos no breu da noite, dava a impressão que nem mais ouviam o Saci, que nem mais ouviam a mata.
- Vô dizê agora qui vô imbora. Vô si encontrá com o Neguim du Pastoreio... vamo mais eu, quem sabe ajuda oceis a vê a luiz. E foi saindo, pulando pela trilha, na direção do fim da mata. Os dois permaneceram ali, parados. Ainda ouviram lá longe o Saci repetindo:
- Num sei o que vai sê de oceis... num sei não!

Era uma vez um certo dia.

Perambulando pelas ruas do centro de Sampa, dois sujeitos tentavam contar essa história a quem eles pediam esmolas. Eram duas figuras. Baixinhos, com os cabelos tingidos de vermelho fogo e totalmente embriagados.
- Ô tiu, dá um real pra nóis comprá pão. Nóis num come deisde onte. Num come não. E aquele bafo de álcool cozido, remanescente aos dias da fundação da cidade.

Dei o dinheiro para eles e, por um instante, tive a impressão que um dos dois, com um velho par de tênis Puma falsificado, tinha os pés virados para trás. Balancei a cabeça e continuei perambulando pelas ruas, tentando encontrar um vendedor de raízes e ervas, pra comprar sálvia ou alecrim. Dizem que é bom pra memória.

CARTA A UM AMIGO

Meu caro,

Talvez essa não lhe chegue. Chegando, não sei com qual clareza, pois me decidi por apagar todas as luzes. Também todos os olhos.

Existir-se é deixar de ser. Deixar de ser é deixar de existir aos olhos famintos.

Não me cabe mais o papel de consolo. Não mais serei muleta para a solidão ou andaime de egos. Não vou mais atrair frustrações. Deixei lá, em um espaço deletado, o eu-referência, que acreditavam lhes dar alguma relevância.

Agora, o que interessa está em mim.

O momento é sereno. Não nego certa euforia pelo alívio. Poder me aperceber que estou inteiro, quando devorado além daquilo que permiti ser. Bom poder se regenerar.

Viver sem exigências. Quebrar o link rastreável das comodidades.

Assim, meu caro, talvez essa não lhe chegue. Chegando, não sei com qual clareza, pois me decidi por apagar todas as luzes. Também todos os olhos.


Aquele sempre abraço.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

XADREZ

TABULEIRO

Faz algum tempo alguma coisa vinha me incomodando. Esse incômodo aqui se instalou e permaneceu palpitante à medida que não conseguia localizá-lo. Bastava que eu saísse de manhã para o trabalho que lá estava ele atravessando pensamentos e interrompendo devaneios, qual funcionário exemplar marcando ponto. Durante o dia, as pressões impostas pelo serviço me abstraiam dessa sensação, mas durante a tarde quando retornava para casa lá estava de novo. Acomodado. Incomodando.

PRIMEIRO MOVIMENTO

Uma cena me era bastante recorrente durante esse período de gestação da descoberta: não me lembro muito bem em qual dos documentários do diretor Godfrey Reggio, Powaqqatsi ou Koyaanisqatsi, há uma cena onde um garoto aparentando pobreza, vestindo roupas um tanto rotas e de cores neutras, vai caminhando no acostamento de uma rodovia extremamente movimentada por enormes caminhões. Aos poucos o garoto vai sendo “desaparecido” ou “engolido” pela fumaça poluente despejada pelos veículos que ali trafegam, até ser tragado completamente. Não entendia muito bem essa recorrência, e até cheguei a comentar com algumas pessoas sobre essa cena, em uma vã tentativa de que assim pudesse desvendar essa impertinência.

PEÕES

Ainda com esse mal-estar esquisito, dia desses pela manhã, na estação ferroviária, vejo caminhando pela plataforma totalmente lotada um rapaz que chamou a atenção de praticamente todos os usuários que esperavam pela próxima composição. Ele simplesmente trajava um agasalho, tipo esportivo, num tom de laranja exuberante, calçava um par de tênis exatamente na mesma cor explosiva e, pra ressaltar, uma calça preta com listras laterais brancas. Depois de observá-lo por algum tempo, automaticamente desviei meus olhos para dar uma olhada geral e mais profunda na plataforma, inclusive em mim mesmo. Foi então, como que despertado de um sono profundo, que consegui me aperceber do que se tratava aquele maldito incômodo. Tudo ali, em volta do rapaz, pessoas, estação, trilhos, trens, paisagem, era de um monocromatismo opressor. Uma predominância quase ditatorial de preto, pincelado aqui e ali de branco, cinza, marrom, alguns tons azuis e verdes. Uma sobriedade exasperante, permitindo-se apenas à timidez subversiva do vermelho dos batons e esmaltes, ainda que sem grandes excessos.
Com a revelação do incômodo e sua natural desmistificação, passei a direcionar meus olhos de forma mais atenta e atrevida a todos os cenários e personagens que iam se desenrolando à minha volta. Tudo o que observei nesse trajeto, da estação até o local onde trabalho, me levou a deduzir que vivemos em um mundo neutro. Um mundo que vai se desbotando, sendo absorvido pela neutralidade em todos os sentidos. Um mundo que não corre qualquer tipo de risco, nem o da cor. Um mundo descolorido. Eu ali parado como parte de tudo isso, trajando uma calça num tom areia, calçados e jaqueta de couro marrons e camiseta preta, empenhado num mimetismo observador.

CAVALO ATACA TORRE

Coincidentemente, em uma dessas noites, atendo o telefone e é um antigo professor meu de literatura, que me liga eventualmente para batermos um papo. Em um determinado ponto da conversa, por alguma razão, passamos a falar sobre fotografia. Ele, indignado, começa a falar de forma exaltada contra as fotos coloridas, contra as “porcarias” das fotos coloridas de celulares e câmeras digitais e que o bacana são as fotos em preto e branco. Bacana são as fotos manipuladas na unha e não na facilidade artificial do Photoshop. Não consegue entender fotos que não sejam em preto e branco. Claro, ele ainda vive em um mundo analógico e costuma vestir-se com elegante rigor e sobriedade. Tem uma recusa, algumas vezes até pertinente, em digitalizar-se.
Ainda ouvindo seu discurso digressivo, fiquei ali pensando, sentado diante de um computador com o Photoshop aberto. Procurei não contestá-lo para não prolongar essa conversa, a meu ver, muito chata. Gosto muito de fotografias em preto e branco e, talvez, até sejam minhas favoritas, mas daí desenvolver uma aversão ao colorido é de uma burrice extrema.
Por outro lado, talvez por uma visão tacanha de minha parte, também me causa uma certa ojeriza essa overdose de fotos de turistas, extremamente coloridas e com pretenções à exuberância, publicadas insistentemente em todas as redes sociais da internet como obras de arte. O meio digital nos proporcionou essa facilidade de todos sermos artístas. Ninguém mais observa, todos querem ser observados. Esse colorido abusivo em postagens segue em direção inversa a um mundo virtual em que vivem trancados, feito de uma sobriedade pastel onde não se distingue indivíduos, mas uma massa que pensa e faz tudo exatamente da mesma maneira, como um grande organismo. Aí encontramos a grande corporação da mesmice.

REI, RAINHA, BISPOS E TORRES

Com todos esses dados burilando em minha cabeça, aos poucos fui juntando essas peças. Mas, viajandão que sou, comecei a divagar por outras questões que, de uma maneira ou de outra se encaixavam dentro desse fato que me incomodava. Lembrei-me, sabe-se lá por quais razões, das histórias da revolução comunista chinesa onde, por medida de “contenção de despesas supérfluas”, ou a mal intencionada tentativa de acabar com o personalismo (leia-se indivíduo), passaram a produzir roupas iguais para todas as pessoas, no mesmo tom de cinza, onde reduziram até o número de botões. O mesmo se deu com todas as casas da população que eram pintadas da mesma cor neutra, não sendo permitida a utilização de cores outras ou diversas. Com isso, reproduziam o absurdo já praticado pela dinastia Ming, construtores da Cidade Proibida, até o fim da dinastia Qing, onde somente ali era permitida a utilização das cores variadas. Ao povo que a rodeava, cuja entrada na cidadela não se permitia, cabia apenas um tom, muito provavelmente um cinza, tanto em roupas quanto na pintura das casas. A neutralidade ou neutralização de um povo, seja nas questões objetivas quanto nas subjetivas, conseguiu igualar os desmandos da revolução maoísta aos desmandos imperiais. Muitas vezes, contrariando o lugar-comum, a história se dá e se repete em tragédia.
O Comunismo de Estado conseguiu transformar o conceito do comum a todos em todos são comuns. Exceção a eles, claro.

CAI O BISPO E SE COME A RAINHA

O uso da cor nos dias de hoje parece restrito a um espaço destinado aos “sofisticados”, aos excêntricos e, claro, à classe social dominante detentores do bom gosto e finesse. Quando o povo se arrisca a um colorido ultrajante aos olhos acostumados à penumbra, ouvimos sempre aquela conversa preconceituosa de que parece coisa de africano, coisa de jamaicano ou de baiano. O colorido, inclusive dentro das classes sociais mais baixas, que absorveu e incorporou esse preconceito, é visto como coisa feia, de mau gosto, ou seja, no seu íntimo reflete o velho esquema: é coisa de preto! O colorido, entre o povo, é para quem quer aparecer. Às mulheres brancas ainda tem a pecha de perúa.

XEQUE-MATE

De olhos fechados vamos sendo automaticamente uniformizados, indistinguíveis como indivíduos. Vamos sendo uniformizados nas empresas, nas escolas, em partidos políticos, nas igrejas e no ato de consumir e produzir, transformados em imagens apagadas de corporações ou grupos em detrimento do indivíduo pensante. Assim vivemos em um mundo onde se reside neutro, se come neutro, se veste neutro, se relaciona neutro e se raciocina neutro. Um mundo que está matando e morrendo de forma neutra. Que produz uma poesia neutra e padronizada, uma música neutra e padronizada e, muito provavelmente, se ama e se faz sexo com padronizada neutralidade.

Com isso na cabeça, hoje de manhã, peguei uma velha camiseta vermelha, já um tanto esgarçada e com alguns furinhos, meti no corpo e fui trabalhar. O dia estava com um lindo sol e as pessoas, como o garoto do documentário, desaparecendo pela fumaça neutra e padronizadora da mediocridade.

DE BRUXAS E GUERREIROS

Quando a cigana, na verdade uma princesa cigana, um tanto espantada e enfática, disse que ele era um homem perigoso, apenas sorriu.

- Perigoso? Como assim? Perguntou sem dissimular que não levava aquelas palavras muito a sério.

Ela, em uma estranha combinação, além de cigana, era bruxa assumida e psicanalista. Trabalhava para o estado avaliando a sanidade, ou não, de criminosos brutais. Sua casa, aconchegante, despojada de muitos móveis, era uma mistura de fantasia e casa da avó. Uma vassoura de gravetos ficava encostada ao lado da porta de entrada.

- Sim, perigoso! Reafirmou, assumindo uma postura mais humorada diante da reação dele. Você é um guerreiro e, embora não seja um mago, domina a arte das magias. Muito perigoso! Riu-se pegando delicadamente no braço dele, enquanto caminhavam pela praça em reforma.

Ele se deixou levar por ela em direção à estação ferroviária e sentaram-se na escada da entrada. A conversa, já mais distraída, girava em torno de assuntos diversos. Haviam se conhecido pela internet, encontraram-se pessoalmente e tornaram-se bons amigos.

- Eu adoro lobos, disse ela. Tenho certeza que se ficar diante de um, ele não vai me atacar.

Ele, coincidentemente, também amante profundo de lobos, seus animais preferidos, disse que sentia essa mesma relação amistosa entre ele e esses animais.

- Eu sei! Afirmou a bruxa cigana, olhando seriamente pra ele.

Aproximando-se do momento dele embarcar de volta para a casa, ela acercou-se mais junto e disse, com gravidade:

- Menino, você encanta, enfeitiça, por isso é perigoso, mas também liberta. Portanto, ninguém, nada, será seu. Você é guerreiro e luta para e não por alguém. Em um guerreiro a entrega é só na luta. É um ganhar e perder constantes. Seus olhos sempre estarão nos próximos passos. Lobo solitário.


Pensando nessas palavras, sentou-se sozinho em um banco do vagão, praticamente vazio, sem que qualquer pessoa lhe prestasse atenção em especial. O apito do trem uivava para a lua.

O PAULISTA E A VIÚVA

Nunca reclamou de nada. Não que achasse a vida perfeita ou mesmo se preocupasse com isso. Mesmo nessa noite, quando ela não entrou, aceitou de forma natural. Apenas despiu-se do terno, que pendurou esmeradamente no cabide. Vestiu o pijama e sentou-se defronte à TV, sem prestar a atenção ao que passava, esperando a hora de se deitar.

No dia seguinte, ao final da tarde, quando o sol estava mais ameno, levou Paulista para um passeio pelo quarteirão. Paulista era um vira-latas que encontrou defronte sua casa ainda filhote. Não gostava de ir à praça onde outras pessoas, geralmente aposentados, ficavam passeando com seus cachorros, outras apenas sentadas nos bancos, jogando baralho, dominó, falando dos velhos tempos, da saúde ou do último defunto. As crianças faziam muito barulho e gostavam de provocar os animais.

Assim, como todos os dias, naquele horário, apenas deu a volta no quarteirão com o cachorro, não sem antes armar-se de uma pequena pá e saquinho plástico para recolher as eventuais sujeiras do Paulista.

Voltou para casa. Deu água e ração ao cachorro e foi tomar um banho. A água morna ia tirando a espuma do seu corpo, que ele observava descer lentamente pelo ralo. Sentiu fome.

Esquentou em banho-maria a marmitex que havia apanhado logo após o almoço. Jantou lentamente, pensando que guardaria os restos na geladeira para dar ao Paulista no dia seguinte. Sentou-se diante da janela da cozinha e acendeu um cigarro, o último do dia. Há muito determinara apenas três cigarros ao dia: um após o café da manhã, outro após o almoço e, finalmente, aquele após o jantar.

Seu único terno, em marrom escuro, estava cuidadosamente dobrado sobre a cama. Passou um desodorante nas axilas, borrifou no pescoço e próximo às orelhas um perfume, comprado de uma moça sua vizinha que vendia de porta em porta. Vestiu-se com calma e acertou o nó da gravata diante de um pequeno espelho adaptado ao velho guarda-roupa.

Quando resolveu comprar o computador do rapaz que trabalhava na farmácia, que o oferecia a baixo custo por dificuldades financeiras, procurou, durante alguns meses, fazer um desses cursinhos onde se ensinam Windows, Office e internet. Ligava-o somente durante o anoitecer, quando não estava, de forma quase constante, na assistência técnica.

Sentou-se comodamente na cadeira que trouxera da cozinha e ligou o computador. Enquanto aguardava pacientemente a máquina conectar-se à internet, lembrou-se de verificar se o Paulista estava deitado sobre o velho tapetinho na lavanderia que ficava nos fundos da casa. Ainda tinha água e ração.

Dando uma ajeitada no terno e passando a mão sobre os ralos cabelos para acertar um possível desalinho, entrou na sala de bate-papo. Era sempre aquela mesma sala, a de número 13, para usuários acima de 60 anos.

Elvira tinha 69 anos, viúva e com filhos já criados. Morava no interior e vivia da aposentadoria do marido. Mandou-lhe por e-mail uma foto dela com o falecido Roque em um passeio que haviam feito a Campos do Jordão, em 1975. Quando recebeu a foto pensou que não conhecia Campos do Jordão. Raramente saiu da Penha, onde sempre morou. Tinha vagas lembranças de quando ia com seu pai, com quem começou a trabalhar desde muito cedo, até Jundiaí visitar um tio.

Falava com Elvira pelo chat há pelo menos seis meses. Nem sabe muito bem como começou a amizade, mas marcaram ali, naquele espaço, um encontro diário, sempre no mesmo horário. Ele se resumia a monossilábicos comentários, concordâncias, a saúde e o passeio com o cachorro. Ela colocava o passado em dia, o marido falecido, os filhos, os netos e o plano funerário que fizera para evitar dor de cabeça para os outros. Ele pensou nisso, mas não havia dor de cabeça para outros.

Mas Elvira não entrou. Havia duas semanas que Elvira não entrava no chat. Levantou-se calmamente para desligar o computador. Ligou, por breve instante, o televisor onde atores corriam de explosões e tiros em um filme possivelmente de guerra. Indiferente, desligou.

Calmamente tirou o terno, que pendurou cuidadosamente no cabide. Sem pressa, vestiu o pijama. Deitou-se pensando que amanhã teria que ir ao mercado comprar comida para ele e para o Paulista.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

CRIME & CASTIGO

Não sei bem como cheguei até aquele local. Minha cabeça ainda estava confusa. Havia algo que parecia imobilizar meus movimentos.

Após um breve e difícil reconhecimento percebi um homem à minha frente. Ele estava com uns óculos já meio em desuso, grandes e de lentes verdes. Sua tentativa infrutífera, e até ridícula, em querer estar elegante me pareceu ser um policial, vendedor de cosméticos ou segurança de supermercado.

Não errei! Foi se aproximando muito devagar, falando arrastado, se apresentou.

- Sou o investigador Ianella. Renato Ianella. Fez uma pausa estudada e continuou, você passa habitualmente naquele horário por aquela rua?

- Não, sr. investigador, não era a hora habitual em que passo naquela rua... isso raramente acontece, falei, respondendo sua pergunta.

Ele colocou as mãos de lado, com as palmas viradas para cima e levantou o queixo, que apontava para mim, num gesto de e daí, continue.

- Meu horário costumeiro ao sair do serviço é no começo da noite, mas como tinha muito trabalho acumulado resolvi ficar até mais tarde.

Sentou-se ao contrário na cadeira, acotovelado ao encosto, moveu-se repentinamente e ficou me olhando. Sua expressão parecia de quem adivinhava que eu não levava muito a sério aquela sua pose ameaçadora e sua pretensa astúcia. Pensei comigo, porque esse tipo de gente é tão estúpida?

- Quer dizer então que o senhor é culpado de ser vítima? Inquiriu secamente após alguns segundos, com um olhar que parecia me atravessar e ir cravar na parede oposta.

- Em sair tarde do serviço, ou em estar aqui nessa sala tentando responder suas perguntas? Fui o mais sarcástico possível, a situação me desagradava.

Fez um grunhido de quem não deu a menor atenção ao que eu disse e passou a andar pelo aposento de um lado para o outro, com as mãos no bolso, desejando parecer que desenhava, em sua mente, uma linha de raciocínio intrigante e complexa.

- Veja bem, o senhor sai do serviço tarde da noite e, pelo que falou, já fez isso outras vezes, embora raramente, caminhando por uma rua, a essa hora, totalmente deserta... sei!

- Mas é meu trajeto habitual, não há outro caminho, tentei argumentar.

- ... e ainda não quer que o inevitável aconteça? Nesse caso, vejo duas possibilidades: a primeira é de que não há fatalidade, mas uma culpa em que a vítima, no caso o senhor, se pune consciente ou inconscientemente se expondo ao perigo.

- O risco, investigador, é sair da linha.

Me ignorou.

- Pela sua profissão, modos de se vestir e falar, vejo que é um homem bem informado, o que torna seu caso bem mais interessante.

Parou recostado à porta da sala, acendeu um cigarro, apesar do cartaz de proibição, e ficou imerso em suas conjecturas policialescas, como se eu já não estivesse mais ali.

- O senhor está afirmando que eu, propositadamente, me fiz de vítima? De que culpa quero me redimir ao arriscar-me na insegurança das ruas?

- Aí é que está questão... o senhor parece encaixar-se, sem dúvida alguma, em minha segunda suspeita.

Andou novamente pela sala, se colocou atrás de mim e começou a falar baixo, pausadamente, bem próximo ao meu ouvido.

- Logo que o vi e comecei a interrogá-lo, notei que seu caso era diferente. O senhor não faz parte das vítimas culpadas que querem se punir, o que torna sua situação delicada... perigosa. O senhor é um homem muito inteligente, qualquer outro policial em meu lugar, já teria se deixado levar por seu teatro, acreditando na casualidade do crime, do qual, afirmo incontinente, é vítima com culpa.

Eu estava frio.

- Por favor, eu não queria estar aqui, foram seus homens que me trouxeram, quando chegaram ao local horas depois do fato ter ocorrido... e, se me permite, o senhor, esse local, tudo isso está me aborrecendo muito.

- Está vendo? Chegamos onde eu queria, no cerne da questão. O senhor é culpado de ser vítima da mais alta periculosidade. Pensou que seu jeito de quem não está entendendo nada e inocência presumida iria adiantar para alguma coisa? Seu disfarce não tem eficácia diante da minha experiência em lidar com desajustados sociais. De gente assim os porões de minha delegacia estão lotados.

O investigador estava eufórico, gesticulava continuadamente, já sem se dar conta se falava comigo ou com seus fantasmas.

- Meliantes como o senhor ameaçam a estabilidade social. Tornam-se vítimas com o único e exclusivo propósito de desacreditar a polícia, desacreditar o Estado e ridicularizar a justiça, como uma instituição incompetente, inoperante e ineficaz.

Começou a ficar vermelho, colocou o paletó no encosto da cadeira, o suor empapava sua camisa, cujas mangas dobrou na altura dos cotovelos.

- Depois querem nos punir quando, no combate aos criminosos, tomamos a justiça em nossas próprias mãos... Queria era dar um fim no senhor agora mesmo, desaparecer com essa culpa que nos quer imputar, que nos aponta o dedo.

Som de passos. Apagou apressadamente, no chão, o cigarro que acabara de acender. Parou de falar e mal cumprimentou os homens que acabavam de abrir a porta. Quieto e deitado imóvel sobre a maca, apenas ouvi seu suspiro de resignação, quando disseram:


- Com licença, policial, precisamos iniciar a autópsia.

KAFKA E EU: SUMIDOS!

Era o último trem e tinha que pegá-lo. A noite estava muito fria e uma chuva fina e gelada mal me deixava ver a hora que tardava no relógio, no alto da torre, da estação da Luz.

Desci correndo para a plataforma onde o trem já estava estacionado, com a preocupação de conseguir entrar antes que as portas automáticas se fechassem.

Entrei e sentei-me a lado do único ocupante do vagão, ainda sem me dar conta disso, pois me faltava ar pela correria, além da tensão dos últimos tempos em função dos acontecimentos sociais e políticos que atravessava o país. Esses pensamentos e a tentativa de respirar rodavam na minha cabeça.

Quando a composição saiu, após o estridente apito, o homem estendeu-me a mão num cumprimento e se apresentou.

- Boa noite, sou Franz Kafka, já não nos conhecemos de algum lugar?

Ainda absorto na fadiga e conjecturas e com espanto de tê-lo percebido nesse momento, apertei-lhe a mão firmemente com uma expressão de dúvida quanto a conhecê-lo.

Perguntou-me, talvez na tentativa de uma boa conversa investigativa, sobre meus amigos. Eu já não tinha amigos. Respondi, um tanto indiferente, perguntando sobre seu pai. Calamo-nos, e calados fomos até a próxima estação.

O trem foi parando muito lentamente na plataforma e ao abrir a porta, além do vento gélido, foi invadido por uma multidão de vendedores ambulantes que seguiam um macaco, imitando-o na venda de suas mercadorias.

O macaco ofereceu-me um cigarro e, apesar da proibição de se fumar no local, aceitei. Kafka recusou.

- Pegue um – insistia o macaco, nós, os macacos também somos proibidos de vender coisas no trem.

Após a insistência ele aceitou um dos cigarros e o guardou no bolso. Talvez realmente não fumasse ou, simplesmente, decidira deixá-lo pra mais tarde.
Os vendedores iam entrando a cada estação que o trem parava e já não mais havia espaço para se locomover. Já não prestavam mais a atenção ao macaco, que lia tranquilamente uma revista sobre programação de TV, e lentamente, um a um foram nos envolvendo, aos empurrões, em busca de um espaço que os aproximasse de nós dois.

Foram nos empurrando mercadorias sobre mercadorias.

Em meio a tanta coisa que comprávamos, papéis e contratos que íamos assinando, alguns mesmo sem ler, começou a me faltar ar novamente, como se tivesse ainda correndo pra não perder o horário. Fui perdendo contato e nem mais conseguia ver meu companheiro em meio a tanta gente, papéis e quinquilharias.

Uma estação antes do meu destino o trem parou e comecei a ficar preocupado como iria conseguir descer se mal conseguia me mover. Demorou a abrir as portas.

Assim que foram abertas, os vendedores foram saindo um a um, cumprimentando amigavelmente dois seguranças da estrada de ferro que entraram acompanhados de um grupo de policiais militares fortemente armados.
Postaram-se agressivamente à nossa frente e sem dizer uma única palavra nos colocaram violentamente para fora do vagão. A plataforma já estava completamente vazia... nunca mais fomos vistos.


O macaco, única testemunha, nunca foi aceito enquanto tal.

A ESCALADA

Quando chegamos o tempo estava fechado. Mal conseguíamos distinguir a montanha entre a enorme expectativa e a frustração que nos abateu.


Montamos acampamento e esperamos. Éramos 15, 20... talvez mais. Entre eles alguns amigos antigos, outros foram se somando na execução do projeto inicial da escalada, alguns poucos foram surgindo durante o percurso e se juntaram ao grupo.

Foram dias de espera. A montanha nos desafiava. Nos tomou os gestos, as palavras, os olhares, os desejos e os pensamentos, até o dia em que se permitiu nos dar uma chance.

O dia amanheceu claro, com o sol despontando no horizonte. Decidimos que chegara a hora.

Com a disciplina conquistada em anos de treinamentos e simulações, fomos nos armando dos equipamentos. Já não nos falávamos, cada um sabia exatamente o que fazer.

Começamos a escalada. Subimos durante muito tempo, embora olhando para baixo mal houvéssemos saído da sua base. Não sei com certeza se foram dias, semanas ou meses, mas o chão parecia sempre estar mais próximo que seu cume, mas ninguém parecia perceber ou se importar com isso.

Ao levantar-me, numa certa manhã, após o descanso noturno, entre sonado e distraído notei alguns arbustos, flores e pequenos insetos que teimavam em ser vida num lugar aparentemente árido e inóspito.

Parei durante algum tempo observando essa pequena descoberta, em meio a tamanha imensidão assustadora.

Quando me voltei para meus companheiros, eles já não estavam lá. Olhei para cima e já não os via. Gritei por seus nomes e já não me ouviam. Apenas um vazio que me preenchia e um silêncio ensurdecedor que me esmagava.

Me instalei em uma das cavernas da montanha e ali vivi durante anos entre insetos rastejantes e voadores. Ali vivi entre um dia e uma noite me preparando para fazer o caminho da volta.

Quando se fez claro, decidi que o dia chegara.


Em mim, o inatingível é o que está diante dos meus olhos, ao alcance das minhas mãos. 

A ideia de um deus nunca, em momento algum, me proporcionou ir tão longe.

MULHER FATAL

Não, com certeza ainda não era meia-noite. Havia acabado de desligar a TV e peguei o De Quincey que estava relendo,


"(...) Assim espero ter demonstrado que o ópio não produz necessariamente inatividade ou torpor, mas que, ao contrário, freqüentemente me levava a mercados e teatros. No entanto, devo admitir com franqueza que mercados e teatros não são os lugares apropriados para o comedor de ópio chegar ao mais divino estado de seu aproveitamento (...)"*

quando ouvi a campainha tocando. Me levantei meio contrariado pela hora, botei os chinelos no pé, abri a porta e fui ao portão atender a pessoa.

- Pois não... o que deseja?

- Você é o Rubinho, certo!

- Sim, sou eu. como sabe meu nome? que é você?

- Ah, me desculpe... sou a Morte e vim lhe trazer um recado...

- Como? perguntei meio espantado, vai ser hoje? vai me fazer descansar das ocupações humanas aqui e agora de maneira tão prosaica, tão vulgarmente comum?

- Por que? me perguntou com um olhar frio e ao mesmo tempo indiferente, esperava um ocasião cheia de pompa e circunstância, grandiloquente? depois de velho ficou com mania de grandeza, é?

- Não, não é isso... é que não sei ainda se quero me redimir da vida, afinal...

- Bom, interrompeu secamente, não me importam seus argumentos... o recado que quero te dar é que hoje ainda não é seu dia... ainda não é dessa vez!

- Como, ainda? agradeço a deferência, mas quem te mandou aqui? deus? Dante? Alan Kardec ou algum bispo evangélico maluco?

- Não brinque comigo ou... ameaçou friamente.

- Ou o quê? você não vai me levar hoje mesmo!

- Fique sabendo, ela continuou, que não sirvo a nenhum senhor, eu trago meus próprios recados. Não sou e nem uso intermediários. Saiba que estou com você desde muito antes que a sua memória possa alcançar. Nem pode imaginar quantas vezes estive muito perto de você.

- Nossa, pelo cheiro pode até ser... e eu sempre botei a culpa nos, acreditava, peidos do Júnior ou do Gargamel e outros. Mas pela aparência, nunca percebi. Juro, acho que nunca te vi antes.

Ficamos nos medindo por um tempo que me pareceu a eternidade. O silêncio era quase mortal, posto que eu ainda estava vivo.

- Mas afinal, perguntei, quando o dia chegar eu vou pra onde? céu, inferno ou purgatório? Quem sabe Valhalla, hein?

- Não seja irônico, não vai pra lugar algum... você só vai morrer!!! a voz era tétrica.

- E não tem nada que eu possa fazer pra evitar isso?

- Não, nada! o único paliativo é continuar vivo na memória dos que continuarem vivendo provisoriamente.

- Ora, eu não quero ser lembrado como uma celebridade reduzida! exclamei com minha indignação canastrona.

- Você? sei... sei... pela primeira vez ela sorriu, ainda que de forma mordaz.

- Tá bom, tá bom... acho que seria bom ser lembrado de vez em quando por umas 5 ou 6 pessoas, se tanto, que realmente valem a pena.

Ela continuou me olhando, agora de um jeito que me pareceu mais amistoso... até cordial.

- Além disso, Morte... posso te chamar assim? em alguns anos mal se lembrarão de mim sem o auxílio de alguma velha foto enfiada numa gaveta, túmulo de velharias e que ninguém vai colocar flores. Claro, sem contar que você pode chegar antecipadamente pra eles e interromper minha vida em suas memórias.

Finalmente ela sorriu sem reservas e simpaticamente colocou sua mão fria, porém solidária, sobre meus ombros.

- Rubinho, meu querido, não quero ser irônica, mas essa é a vida!

Nesse momento, por alguma razão, me lembrei que as pessoas afirmam que o moribundo vê a vida passar diante de si como um filme, em poucos segundos. Eu me esforcei... tentei mesmo, mas não consegui... ou sou ainda um proto falecido ou meu enredo é longa-metragem.

- Mas, indaguei subitamente como que acordando de um sonho ou de um filme ruim, porque veio me dar esse recado, esse é o procedimento comum a todos os mortais?

- Não, não costumo fazer isso. Eu estava mais uma vez passando aqui pertinho de você, vi a luz acesa... além do mais está uma noite agradável, sem muito serviço... estava me sentindo mortalmente entediada e solitária.

- Sabe, definitiva amiga, apesar da fama pouco recomendável e do cheiro, você é uma mulher interessante, inteligente... diria até que esse seu ar lúgubre e misterioso confere uma certa sensualidade fora desse mundo.

Me pareceu ver um leve rubor colorindo aquela palidez, até então mórbida.

- Puxa, meu anjo, minha Valquíria, sábado vou até o Vialle tomar uma cerveja com meus amigos... quer ir comigo? Vamos lá, vai... me deixa seu e-mail... você tem Whatsapp? Facebook?

Timidamente ela baixou os olhos, o rosto cada vez mais rosacadavérico e, entre insegura e perturbada murmurou:

- Rubinho, o que você está querendo?

Era a hora. Lancei o melhor dos meus olhares, pose de galã e disparei:

- Você!!!