Havia
muito tempo que quase todos os entes da floresta haviam desaparecido. As criaturas,
segundo diziam, já não brotavam mais das sementes e das nuvens, não corriam nas
águas e o sol agora apenas iluminava e aquecia... a lua e as estrelas nada mais
diziam, nem mais eram guias.
Os
entes criadores, ouviu, agora estavam inalcançáveis.
Era
uma vez um certo dia.
-
Fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... uh, uh...
tudo tá disandano prá ditrais! num vejo além di eu puraqui.
-
Fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... fiiiiiiiuuuuuuuuuuuuuuu... assoviava o Curupira
enquanto falava com a imagem refletida nas águas do rio.
A
lua também o olhava dentro das águas.
O
roçar das folhagens deixou-o atento e fez com que se voltasse rapidamente. Um
vulto surgiu de dentro da escuridão.
-
Caipora? hu hu, sussura o Curupira.
-
I soeu... hã, hã... u nogóço tá feio de negociá... hã, hã... ié só nóis doise
aqui na mata, falava o Caipora olhando para todos os lados. Os dois mantinham a
grande clareira à margem do rio quase desabitada.
-
Nus incontro passado já quase num tinha ninguém. Fiiiiiiiiiiiiiiii... Boitatá,
Bitatá, baitatá onde ocê tá? Fiiiiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuuuuu... aparece
Batatão!
-
Num dianta, Curupira, Cobra-de-Fogo apagou... batatá hã hã... si inrolo in si
mesma i foi dismilingüindo intristicida, inté virá fumaça di ardê nus óio. I num é qui si foi na queimada... hã hã...
hum hum... e anssim as coisa si vão si sumino.
-
Deisdiquê Iara si amufinô tudinha véia i duenti nu fundo du rio as coisa
disandaro pra ditrais, lamentou o Curupira. As água cabaro cu’ela qui num
cunsiguia mais noivá home bunito. A sujera du rio apagô os óio lindo. Os cabelo
cumprido caiu. Fiiiiiiiiiiiiiii... fiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuu... Mãe-d’água...
afoga as mágoa di nóis.
-
Hã hã... hum hum... o Caipora ficava dando voltas na clareira... u Boto... u
Boto...
-
Boto sumiu! sussurrou Curupira. Boto largô Mãe-d’água suzinha pra viajá nus
lonjão. Caiu nesse mundão... ele véve preso nas água azur prus home apreciá.
Foi pur dimais duído pra Iara. Mais duído que a dor do rio.
-
Quiqui vai sê das muié virge? agora vai morrê di apanhá! dizqui agora ele virô
gorfinho, ganha pêxe na boca... hã hã... hum hum...
Calaram-se
olhando o rio banhando a lua.
-
Iscuita, Curupira... iscuita. Arguém tá sartando na nossa dereção... apura os
orvido...iscuita... hã hã... tão sartando sim!
-
Fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii... fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuuuuuu... parece
danado! quem é ocê qui vem lá?
Do
meio das folhagens enegrecidas pelo entardecer salta para o meio da clareira um
pretinho de uma perna só e um barrete vermelho na cabeça.
-
Sô eu, u Saci! sou eu sim! carma pessoar...
-
Vixê, exclamou o Caipora, quiqui deu in ocê di aparecê agora? faizum tempão qui
ocê sumiu nesse mundão. Já nem sabia si ocê exeste mais.
Calmamente
o negrinho tirou uma baforada do seu cachimbo, ficou olhando ao redor, como se
procurasse alguma coisa dele que havia ficado ali. Deu mais algumas pitadas e
começou a falar.
-
Pessoar, não inxiste mais condição di eu morá no mato, não inxiste não. Deu
mais umas baforadas e continuou, agora eu sô criatura dificiente físico, sô
sim, e us mato num garante sigurança pras minha condição ispiciar... agora
perciso di lugá ispiciarmente perparado. Aquietou-se um instante e prosseguiu:
-
Inda maise quieu tenho uns compromisso co Negrim do Pastoreio pelas iguardade
raciar... tenho sim. Agora nóis é afro de... des... ara, afroargumacoisa.
Maiseu num sei não... das veiz o pretim acende vela prus preto, das veiz acende
pra sinhazinha. Acende sim.
Fumando
continuamente seu cachimbo... foi andando em direção aos dois.
-
Ara essa agora, Saci... pramódique esse bastão? hã hã... hum hum...
-
Lá donde moro us home chama de bengala, chama sim, respondeu automaticamente.
Pausou um instante apoiado no bastão e continuou, i num é qui aquele pretim
ficou mais danado. Dispois qui acismô di sê um tar de cristão, acha tudim.
Notro dia, acendeu a vela i incontrô a Mula-sem-cabeça. A danada tava cum nóis
i num instantim disapareceu. Sumiu
anssim, ó. Num demorô nadica pra nóis achá a bicha. Tava lá instendida, mortinha
da silva nu meio da istrada. U negrim falô qui foi tropelamento, disse qui foi
sim.
Curupira
e Caipora desviaram seus olhares cheios de adivinhação do olhar do outro. Prosseguiu
o Saci.
-
Oceis veve incrausurado nu meio desse matão i num sabe du mundão lá fora. Num
sabi não. Oceis alembra daqueles bichim qui vinheram lá dos lonjão prum
incontro di nóis... faizum tempão. Faiz sim!
-
Ôxe, si alembro. Era uns tar di duende, umas tar de fada, umas tar de bruxa...
recordou o Curupira. Vixê, isso faizum tempão memo... hã hã..
fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii...
fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuuuuuuuuu...
-
Poisé, falou o Saci, os home capituraro uns exemprar dus bichin, capituraro sim,
fizero us bichin procriá... ôxe, quá quá, quá quá... os bichim reproduiz mais
qui cueio, sô! Ispaiaro pra tudo qui é
lugá. Eles veve bem mió qui nóis na froresta. Os bichim num passa frio, num
passa fome i num corre pirigu ninhum. Os home faiz muita festa preles...
argumas veiz eles cunvidava nóis... mais era iscundidim. Si ispaiaro por esse
mundão sem portera.
O
Curupira olhava para o Caipora e o Caipora olhava para o Curupira e os dois
olhavam para o Saci que não parava de fumar seu cachimbo, nem de falar.
-
U Lubisome véio agora é cachorro pastor da força púbrica. O disgraçado nem
recunhece mais as gente. Os puliça atiça ele in nóis e fiodaputa arreganha os
dentão, latindo, e vem mordê nóis. Vem mordê sim. Vixe, vou dize qui dueu nos
peito ficá oiando aquele bichão di quatro. Isso dueu.
-
A cumadi Mãe-de-Ouro, continuou o Saci na falação, agora num cunsegue mais avuá
i nem levá us homi casado pro buraco. Quem é qui vai avuá cuessa sujerada toda?
Os buraco virô tudo tuner. Ela tá trabaiando nas rua do porto. Tadinha, tá
cabada... duenti. Tem qui pagá pra trabaiá na rua. Tem um tar lá que bate nela.
Bate sim.
Parou
de falar por um momento e ficou olhando em volta como se nem estivesse vendo os
dois ali, estáticos. A cada tragada ficava observando a fumaça que ia
desaparecendo na escuridão. Nuvens cobriram a lua.
-
Num sei o que vai sê de oceis... num sei não! Murmurou o Saci como para si
próprio. Num dianta mais ficá na mata, sô. Ôxe, num dianta memo.
O
Curupira e o Caipora ficaram ali prostrados. Com os olhares perdidos no breu da
noite, dava a impressão que nem mais ouviam o Saci, que nem mais ouviam a mata.
-
Vô dizê agora qui vô imbora. Vô si encontrá com o Neguim du Pastoreio... vamo
mais eu, quem sabe ajuda oceis a vê a luiz. E foi saindo, pulando pela trilha,
na direção do fim da mata. Os dois permaneceram ali, parados. Ainda ouviram lá
longe o Saci repetindo:
-
Num sei o que vai sê de oceis... num sei não!
Era
uma vez um certo dia.
Perambulando
pelas ruas do centro de Sampa, dois sujeitos tentavam contar essa história a
quem eles pediam esmolas. Eram duas figuras. Baixinhos, com os cabelos tingidos
de vermelho fogo e totalmente embriagados.
-
Ô tiu, dá um real pra nóis comprá pão. Nóis num come deisde onte. Num come não.
E aquele bafo de álcool cozido, remanescente aos dias da fundação da cidade.
Dei
o dinheiro para eles e, por um instante, tive a impressão que um dos dois, com
um velho par de tênis Puma falsificado, tinha os pés virados para trás.
Balancei a cabeça e continuei perambulando pelas ruas, tentando encontrar um
vendedor de raízes e ervas, pra comprar sálvia ou alecrim. Dizem que é bom pra
memória.