quinta-feira, 13 de outubro de 2016

XADREZ

TABULEIRO

Faz algum tempo alguma coisa vinha me incomodando. Esse incômodo aqui se instalou e permaneceu palpitante à medida que não conseguia localizá-lo. Bastava que eu saísse de manhã para o trabalho que lá estava ele atravessando pensamentos e interrompendo devaneios, qual funcionário exemplar marcando ponto. Durante o dia, as pressões impostas pelo serviço me abstraiam dessa sensação, mas durante a tarde quando retornava para casa lá estava de novo. Acomodado. Incomodando.

PRIMEIRO MOVIMENTO

Uma cena me era bastante recorrente durante esse período de gestação da descoberta: não me lembro muito bem em qual dos documentários do diretor Godfrey Reggio, Powaqqatsi ou Koyaanisqatsi, há uma cena onde um garoto aparentando pobreza, vestindo roupas um tanto rotas e de cores neutras, vai caminhando no acostamento de uma rodovia extremamente movimentada por enormes caminhões. Aos poucos o garoto vai sendo “desaparecido” ou “engolido” pela fumaça poluente despejada pelos veículos que ali trafegam, até ser tragado completamente. Não entendia muito bem essa recorrência, e até cheguei a comentar com algumas pessoas sobre essa cena, em uma vã tentativa de que assim pudesse desvendar essa impertinência.

PEÕES

Ainda com esse mal-estar esquisito, dia desses pela manhã, na estação ferroviária, vejo caminhando pela plataforma totalmente lotada um rapaz que chamou a atenção de praticamente todos os usuários que esperavam pela próxima composição. Ele simplesmente trajava um agasalho, tipo esportivo, num tom de laranja exuberante, calçava um par de tênis exatamente na mesma cor explosiva e, pra ressaltar, uma calça preta com listras laterais brancas. Depois de observá-lo por algum tempo, automaticamente desviei meus olhos para dar uma olhada geral e mais profunda na plataforma, inclusive em mim mesmo. Foi então, como que despertado de um sono profundo, que consegui me aperceber do que se tratava aquele maldito incômodo. Tudo ali, em volta do rapaz, pessoas, estação, trilhos, trens, paisagem, era de um monocromatismo opressor. Uma predominância quase ditatorial de preto, pincelado aqui e ali de branco, cinza, marrom, alguns tons azuis e verdes. Uma sobriedade exasperante, permitindo-se apenas à timidez subversiva do vermelho dos batons e esmaltes, ainda que sem grandes excessos.
Com a revelação do incômodo e sua natural desmistificação, passei a direcionar meus olhos de forma mais atenta e atrevida a todos os cenários e personagens que iam se desenrolando à minha volta. Tudo o que observei nesse trajeto, da estação até o local onde trabalho, me levou a deduzir que vivemos em um mundo neutro. Um mundo que vai se desbotando, sendo absorvido pela neutralidade em todos os sentidos. Um mundo que não corre qualquer tipo de risco, nem o da cor. Um mundo descolorido. Eu ali parado como parte de tudo isso, trajando uma calça num tom areia, calçados e jaqueta de couro marrons e camiseta preta, empenhado num mimetismo observador.

CAVALO ATACA TORRE

Coincidentemente, em uma dessas noites, atendo o telefone e é um antigo professor meu de literatura, que me liga eventualmente para batermos um papo. Em um determinado ponto da conversa, por alguma razão, passamos a falar sobre fotografia. Ele, indignado, começa a falar de forma exaltada contra as fotos coloridas, contra as “porcarias” das fotos coloridas de celulares e câmeras digitais e que o bacana são as fotos em preto e branco. Bacana são as fotos manipuladas na unha e não na facilidade artificial do Photoshop. Não consegue entender fotos que não sejam em preto e branco. Claro, ele ainda vive em um mundo analógico e costuma vestir-se com elegante rigor e sobriedade. Tem uma recusa, algumas vezes até pertinente, em digitalizar-se.
Ainda ouvindo seu discurso digressivo, fiquei ali pensando, sentado diante de um computador com o Photoshop aberto. Procurei não contestá-lo para não prolongar essa conversa, a meu ver, muito chata. Gosto muito de fotografias em preto e branco e, talvez, até sejam minhas favoritas, mas daí desenvolver uma aversão ao colorido é de uma burrice extrema.
Por outro lado, talvez por uma visão tacanha de minha parte, também me causa uma certa ojeriza essa overdose de fotos de turistas, extremamente coloridas e com pretenções à exuberância, publicadas insistentemente em todas as redes sociais da internet como obras de arte. O meio digital nos proporcionou essa facilidade de todos sermos artístas. Ninguém mais observa, todos querem ser observados. Esse colorido abusivo em postagens segue em direção inversa a um mundo virtual em que vivem trancados, feito de uma sobriedade pastel onde não se distingue indivíduos, mas uma massa que pensa e faz tudo exatamente da mesma maneira, como um grande organismo. Aí encontramos a grande corporação da mesmice.

REI, RAINHA, BISPOS E TORRES

Com todos esses dados burilando em minha cabeça, aos poucos fui juntando essas peças. Mas, viajandão que sou, comecei a divagar por outras questões que, de uma maneira ou de outra se encaixavam dentro desse fato que me incomodava. Lembrei-me, sabe-se lá por quais razões, das histórias da revolução comunista chinesa onde, por medida de “contenção de despesas supérfluas”, ou a mal intencionada tentativa de acabar com o personalismo (leia-se indivíduo), passaram a produzir roupas iguais para todas as pessoas, no mesmo tom de cinza, onde reduziram até o número de botões. O mesmo se deu com todas as casas da população que eram pintadas da mesma cor neutra, não sendo permitida a utilização de cores outras ou diversas. Com isso, reproduziam o absurdo já praticado pela dinastia Ming, construtores da Cidade Proibida, até o fim da dinastia Qing, onde somente ali era permitida a utilização das cores variadas. Ao povo que a rodeava, cuja entrada na cidadela não se permitia, cabia apenas um tom, muito provavelmente um cinza, tanto em roupas quanto na pintura das casas. A neutralidade ou neutralização de um povo, seja nas questões objetivas quanto nas subjetivas, conseguiu igualar os desmandos da revolução maoísta aos desmandos imperiais. Muitas vezes, contrariando o lugar-comum, a história se dá e se repete em tragédia.
O Comunismo de Estado conseguiu transformar o conceito do comum a todos em todos são comuns. Exceção a eles, claro.

CAI O BISPO E SE COME A RAINHA

O uso da cor nos dias de hoje parece restrito a um espaço destinado aos “sofisticados”, aos excêntricos e, claro, à classe social dominante detentores do bom gosto e finesse. Quando o povo se arrisca a um colorido ultrajante aos olhos acostumados à penumbra, ouvimos sempre aquela conversa preconceituosa de que parece coisa de africano, coisa de jamaicano ou de baiano. O colorido, inclusive dentro das classes sociais mais baixas, que absorveu e incorporou esse preconceito, é visto como coisa feia, de mau gosto, ou seja, no seu íntimo reflete o velho esquema: é coisa de preto! O colorido, entre o povo, é para quem quer aparecer. Às mulheres brancas ainda tem a pecha de perúa.

XEQUE-MATE

De olhos fechados vamos sendo automaticamente uniformizados, indistinguíveis como indivíduos. Vamos sendo uniformizados nas empresas, nas escolas, em partidos políticos, nas igrejas e no ato de consumir e produzir, transformados em imagens apagadas de corporações ou grupos em detrimento do indivíduo pensante. Assim vivemos em um mundo onde se reside neutro, se come neutro, se veste neutro, se relaciona neutro e se raciocina neutro. Um mundo que está matando e morrendo de forma neutra. Que produz uma poesia neutra e padronizada, uma música neutra e padronizada e, muito provavelmente, se ama e se faz sexo com padronizada neutralidade.

Com isso na cabeça, hoje de manhã, peguei uma velha camiseta vermelha, já um tanto esgarçada e com alguns furinhos, meti no corpo e fui trabalhar. O dia estava com um lindo sol e as pessoas, como o garoto do documentário, desaparecendo pela fumaça neutra e padronizadora da mediocridade.

Um comentário:

  1. Este um que havia lido no face. Uma crônica e tanto! Embora eu sempre use as roupas que me dão e não costume escolhe-las por nenhuma ideologia...

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