TABULEIRO
Faz algum tempo alguma coisa vinha me incomodando.
Esse incômodo aqui se instalou e permaneceu palpitante à medida que não
conseguia localizá-lo. Bastava que eu saísse de manhã para o trabalho que lá
estava ele atravessando pensamentos e interrompendo devaneios, qual funcionário
exemplar marcando ponto. Durante o dia, as pressões impostas pelo serviço me abstraiam
dessa sensação, mas durante a tarde quando retornava para casa lá estava de
novo. Acomodado. Incomodando.
PRIMEIRO MOVIMENTO
Uma cena me era bastante recorrente durante esse
período de gestação da descoberta: não me lembro muito bem em qual dos
documentários do diretor Godfrey Reggio, Powaqqatsi ou
Koyaanisqatsi, há uma cena onde um
garoto aparentando pobreza, vestindo roupas um tanto rotas e de cores neutras,
vai caminhando no acostamento de uma rodovia extremamente movimentada por
enormes caminhões. Aos poucos o garoto vai sendo “desaparecido” ou “engolido”
pela fumaça poluente despejada pelos veículos que ali trafegam, até ser tragado
completamente. Não entendia muito bem essa recorrência, e até cheguei a
comentar com algumas pessoas sobre essa cena, em uma vã tentativa de que assim
pudesse desvendar essa impertinência.
PEÕES
Ainda
com esse mal-estar esquisito, dia desses pela manhã, na estação ferroviária,
vejo caminhando pela plataforma totalmente lotada um rapaz que chamou a atenção
de praticamente todos os usuários que esperavam pela próxima composição. Ele
simplesmente trajava um agasalho, tipo esportivo, num tom de laranja
exuberante, calçava um par de tênis exatamente na mesma cor explosiva e, pra
ressaltar, uma calça preta com listras laterais brancas. Depois de observá-lo
por algum tempo, automaticamente desviei meus olhos para dar uma olhada geral e
mais profunda na plataforma, inclusive em mim mesmo. Foi então, como que
despertado de um sono profundo, que consegui me aperceber do que se tratava
aquele maldito incômodo. Tudo ali, em volta do rapaz, pessoas, estação,
trilhos, trens, paisagem, era de um monocromatismo opressor. Uma predominância
quase ditatorial de preto, pincelado aqui e ali de branco, cinza, marrom,
alguns tons azuis e verdes. Uma sobriedade exasperante, permitindo-se apenas à
timidez subversiva do vermelho dos batons e esmaltes, ainda que sem grandes excessos.
Com
a revelação do incômodo e sua natural desmistificação, passei a direcionar meus
olhos de forma mais atenta e atrevida a todos os cenários e personagens que iam
se desenrolando à minha volta. Tudo o que observei nesse trajeto, da estação
até o local onde trabalho, me levou a deduzir que vivemos em um mundo neutro.
Um mundo que vai se desbotando, sendo absorvido pela neutralidade em todos os
sentidos. Um mundo que não corre qualquer tipo de risco, nem o da cor. Um mundo
descolorido. Eu ali parado como parte de tudo isso, trajando uma calça num tom
areia, calçados e jaqueta de couro marrons e camiseta preta, empenhado num
mimetismo observador.
CAVALO
ATACA TORRE
Coincidentemente,
em uma dessas noites, atendo o telefone e é um antigo professor meu de
literatura, que me liga eventualmente para batermos um papo. Em um determinado
ponto da conversa, por alguma razão, passamos a falar sobre fotografia. Ele,
indignado, começa a falar de forma exaltada contra as fotos coloridas, contra as
“porcarias” das fotos coloridas de celulares e câmeras digitais e que o bacana
são as fotos em preto e branco. Bacana são as fotos manipuladas na unha e não
na facilidade artificial do Photoshop. Não consegue entender fotos que não sejam
em preto e branco. Claro, ele ainda vive em um mundo analógico e costuma
vestir-se com elegante rigor e sobriedade. Tem uma recusa, algumas vezes até
pertinente, em digitalizar-se.
Ainda
ouvindo seu discurso digressivo, fiquei ali pensando, sentado diante de um
computador com o Photoshop aberto. Procurei não contestá-lo para não prolongar
essa conversa, a meu ver, muito chata. Gosto muito de fotografias em preto e
branco e, talvez, até sejam minhas favoritas, mas daí desenvolver uma aversão
ao colorido é de uma burrice extrema.
Por
outro lado, talvez por uma visão tacanha de minha parte, também me causa uma
certa ojeriza essa overdose de fotos de turistas, extremamente coloridas e com
pretenções à exuberância, publicadas insistentemente em todas as redes sociais
da internet como obras de arte. O meio digital nos proporcionou essa facilidade
de todos sermos artístas. Ninguém mais observa, todos querem ser observados.
Esse colorido abusivo em postagens segue em direção inversa a um mundo virtual
em que vivem trancados, feito de uma sobriedade pastel onde não se distingue
indivíduos, mas uma massa que pensa e faz tudo exatamente da mesma maneira,
como um grande organismo. Aí encontramos a grande corporação da mesmice.
REI,
RAINHA, BISPOS E TORRES
Com
todos esses dados burilando em minha cabeça, aos poucos fui juntando essas
peças. Mas, viajandão que sou, comecei a divagar por outras questões que, de
uma maneira ou de outra se encaixavam dentro desse fato que me incomodava. Lembrei-me,
sabe-se lá por quais razões, das histórias da revolução comunista chinesa onde,
por medida de “contenção de despesas supérfluas”, ou a mal intencionada
tentativa de acabar com o personalismo (leia-se indivíduo), passaram a produzir
roupas iguais para todas as pessoas, no mesmo tom de cinza, onde reduziram até
o número de botões. O mesmo se deu com todas as casas da população que eram
pintadas da mesma cor neutra, não sendo permitida a utilização de cores outras
ou diversas. Com isso, reproduziam o absurdo já praticado pela dinastia Ming, construtores
da Cidade Proibida, até o fim da dinastia Qing, onde somente ali era permitida
a utilização das cores variadas. Ao povo que a rodeava, cuja entrada na
cidadela não se permitia, cabia apenas um tom, muito provavelmente um cinza,
tanto em roupas quanto na pintura das casas. A neutralidade ou neutralização de
um povo, seja nas questões objetivas quanto nas subjetivas, conseguiu igualar
os desmandos da revolução maoísta aos desmandos imperiais. Muitas vezes,
contrariando o lugar-comum, a história se dá e se repete em tragédia.
O
Comunismo de Estado conseguiu transformar o conceito do comum a todos em todos
são comuns. Exceção a eles, claro.
CAI
O BISPO E SE COME A RAINHA
O
uso da cor nos dias de hoje parece restrito a um espaço destinado aos
“sofisticados”, aos excêntricos e, claro, à classe social dominante detentores
do bom gosto e finesse. Quando o povo se arrisca a um colorido
ultrajante aos olhos acostumados à penumbra, ouvimos sempre aquela conversa
preconceituosa de que parece coisa de africano, coisa de jamaicano ou de
baiano. O colorido, inclusive dentro das classes sociais mais baixas, que
absorveu e incorporou esse preconceito, é visto como coisa feia, de mau gosto,
ou seja, no seu íntimo reflete o velho esquema: é coisa de preto! O colorido,
entre o povo, é para quem quer aparecer. Às mulheres brancas ainda tem a pecha
de perúa.
XEQUE-MATE
De
olhos fechados vamos sendo automaticamente uniformizados, indistinguíveis como
indivíduos. Vamos sendo uniformizados nas empresas, nas escolas, em partidos
políticos, nas igrejas e no ato de consumir e produzir, transformados em
imagens apagadas de corporações ou grupos em detrimento do indivíduo pensante.
Assim vivemos em um mundo onde se reside neutro, se come neutro, se veste
neutro, se relaciona neutro e se raciocina neutro. Um mundo que está matando e
morrendo de forma neutra. Que produz uma poesia neutra e padronizada, uma
música neutra e padronizada e, muito provavelmente, se ama e se faz sexo com
padronizada neutralidade.
Com
isso na cabeça, hoje de manhã, peguei uma velha camiseta vermelha, já um tanto
esgarçada e com alguns furinhos, meti no corpo e fui trabalhar. O dia estava
com um lindo sol e as pessoas, como o garoto do documentário, desaparecendo
pela fumaça neutra e padronizadora da mediocridade.
Este um que havia lido no face. Uma crônica e tanto! Embora eu sempre use as roupas que me dão e não costume escolhe-las por nenhuma ideologia...
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