quarta-feira, 12 de outubro de 2016

CRIME & CASTIGO

Não sei bem como cheguei até aquele local. Minha cabeça ainda estava confusa. Havia algo que parecia imobilizar meus movimentos.

Após um breve e difícil reconhecimento percebi um homem à minha frente. Ele estava com uns óculos já meio em desuso, grandes e de lentes verdes. Sua tentativa infrutífera, e até ridícula, em querer estar elegante me pareceu ser um policial, vendedor de cosméticos ou segurança de supermercado.

Não errei! Foi se aproximando muito devagar, falando arrastado, se apresentou.

- Sou o investigador Ianella. Renato Ianella. Fez uma pausa estudada e continuou, você passa habitualmente naquele horário por aquela rua?

- Não, sr. investigador, não era a hora habitual em que passo naquela rua... isso raramente acontece, falei, respondendo sua pergunta.

Ele colocou as mãos de lado, com as palmas viradas para cima e levantou o queixo, que apontava para mim, num gesto de e daí, continue.

- Meu horário costumeiro ao sair do serviço é no começo da noite, mas como tinha muito trabalho acumulado resolvi ficar até mais tarde.

Sentou-se ao contrário na cadeira, acotovelado ao encosto, moveu-se repentinamente e ficou me olhando. Sua expressão parecia de quem adivinhava que eu não levava muito a sério aquela sua pose ameaçadora e sua pretensa astúcia. Pensei comigo, porque esse tipo de gente é tão estúpida?

- Quer dizer então que o senhor é culpado de ser vítima? Inquiriu secamente após alguns segundos, com um olhar que parecia me atravessar e ir cravar na parede oposta.

- Em sair tarde do serviço, ou em estar aqui nessa sala tentando responder suas perguntas? Fui o mais sarcástico possível, a situação me desagradava.

Fez um grunhido de quem não deu a menor atenção ao que eu disse e passou a andar pelo aposento de um lado para o outro, com as mãos no bolso, desejando parecer que desenhava, em sua mente, uma linha de raciocínio intrigante e complexa.

- Veja bem, o senhor sai do serviço tarde da noite e, pelo que falou, já fez isso outras vezes, embora raramente, caminhando por uma rua, a essa hora, totalmente deserta... sei!

- Mas é meu trajeto habitual, não há outro caminho, tentei argumentar.

- ... e ainda não quer que o inevitável aconteça? Nesse caso, vejo duas possibilidades: a primeira é de que não há fatalidade, mas uma culpa em que a vítima, no caso o senhor, se pune consciente ou inconscientemente se expondo ao perigo.

- O risco, investigador, é sair da linha.

Me ignorou.

- Pela sua profissão, modos de se vestir e falar, vejo que é um homem bem informado, o que torna seu caso bem mais interessante.

Parou recostado à porta da sala, acendeu um cigarro, apesar do cartaz de proibição, e ficou imerso em suas conjecturas policialescas, como se eu já não estivesse mais ali.

- O senhor está afirmando que eu, propositadamente, me fiz de vítima? De que culpa quero me redimir ao arriscar-me na insegurança das ruas?

- Aí é que está questão... o senhor parece encaixar-se, sem dúvida alguma, em minha segunda suspeita.

Andou novamente pela sala, se colocou atrás de mim e começou a falar baixo, pausadamente, bem próximo ao meu ouvido.

- Logo que o vi e comecei a interrogá-lo, notei que seu caso era diferente. O senhor não faz parte das vítimas culpadas que querem se punir, o que torna sua situação delicada... perigosa. O senhor é um homem muito inteligente, qualquer outro policial em meu lugar, já teria se deixado levar por seu teatro, acreditando na casualidade do crime, do qual, afirmo incontinente, é vítima com culpa.

Eu estava frio.

- Por favor, eu não queria estar aqui, foram seus homens que me trouxeram, quando chegaram ao local horas depois do fato ter ocorrido... e, se me permite, o senhor, esse local, tudo isso está me aborrecendo muito.

- Está vendo? Chegamos onde eu queria, no cerne da questão. O senhor é culpado de ser vítima da mais alta periculosidade. Pensou que seu jeito de quem não está entendendo nada e inocência presumida iria adiantar para alguma coisa? Seu disfarce não tem eficácia diante da minha experiência em lidar com desajustados sociais. De gente assim os porões de minha delegacia estão lotados.

O investigador estava eufórico, gesticulava continuadamente, já sem se dar conta se falava comigo ou com seus fantasmas.

- Meliantes como o senhor ameaçam a estabilidade social. Tornam-se vítimas com o único e exclusivo propósito de desacreditar a polícia, desacreditar o Estado e ridicularizar a justiça, como uma instituição incompetente, inoperante e ineficaz.

Começou a ficar vermelho, colocou o paletó no encosto da cadeira, o suor empapava sua camisa, cujas mangas dobrou na altura dos cotovelos.

- Depois querem nos punir quando, no combate aos criminosos, tomamos a justiça em nossas próprias mãos... Queria era dar um fim no senhor agora mesmo, desaparecer com essa culpa que nos quer imputar, que nos aponta o dedo.

Som de passos. Apagou apressadamente, no chão, o cigarro que acabara de acender. Parou de falar e mal cumprimentou os homens que acabavam de abrir a porta. Quieto e deitado imóvel sobre a maca, apenas ouvi seu suspiro de resignação, quando disseram:


- Com licença, policial, precisamos iniciar a autópsia.

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