Não sei bem como
cheguei até aquele local. Minha cabeça ainda estava confusa. Havia algo que
parecia imobilizar meus movimentos.
Após um breve e
difícil reconhecimento percebi um homem à minha frente. Ele estava com uns
óculos já meio em desuso, grandes e de lentes verdes. Sua tentativa
infrutífera, e até ridícula, em querer estar elegante me pareceu ser um
policial, vendedor de cosméticos ou segurança de supermercado.
Não errei! Foi se
aproximando muito devagar, falando arrastado, se apresentou.
- Sou o investigador
Ianella. Renato Ianella. Fez uma pausa estudada e continuou, você passa
habitualmente naquele horário por aquela rua?
- Não, sr. investigador,
não era a hora habitual em que passo naquela rua... isso raramente acontece,
falei, respondendo sua pergunta.
Ele colocou as mãos
de lado, com as palmas viradas para cima e levantou o queixo, que apontava para
mim, num gesto de e daí, continue.
- Meu horário
costumeiro ao sair do serviço é no começo da noite, mas como tinha muito
trabalho acumulado resolvi ficar até mais tarde.
Sentou-se ao
contrário na cadeira, acotovelado ao encosto, moveu-se repentinamente e ficou
me olhando. Sua expressão parecia de quem adivinhava que eu não levava muito a
sério aquela sua pose ameaçadora e sua pretensa astúcia. Pensei comigo, porque
esse tipo de gente é tão estúpida?
- Quer dizer então
que o senhor é culpado de ser vítima? Inquiriu secamente após alguns segundos,
com um olhar que parecia me atravessar e ir cravar na parede oposta.
- Em sair tarde do
serviço, ou em estar aqui nessa sala tentando responder suas perguntas? Fui o
mais sarcástico possível, a situação me desagradava.
Fez um grunhido de
quem não deu a menor atenção ao que eu disse e passou a andar pelo aposento de
um lado para o outro, com as mãos no bolso, desejando parecer que desenhava, em
sua mente, uma linha de raciocínio intrigante e complexa.
- Veja bem, o
senhor sai do serviço tarde da noite e, pelo que falou, já fez isso outras
vezes, embora raramente, caminhando por uma rua, a essa hora, totalmente
deserta... sei!
- Mas é meu trajeto
habitual, não há outro caminho, tentei argumentar.
- ... e ainda não
quer que o inevitável aconteça? Nesse caso, vejo duas possibilidades: a
primeira é de que não há fatalidade, mas uma culpa em que a vítima, no caso o
senhor, se pune consciente ou inconscientemente se expondo ao perigo.
-
O risco, investigador, é sair da linha.
Me
ignorou.
-
Pela sua profissão, modos de se vestir e falar, vejo que é um homem bem
informado, o que torna seu caso bem mais interessante.
Parou recostado à
porta da sala, acendeu um cigarro, apesar do cartaz de proibição, e ficou
imerso em suas conjecturas policialescas, como se eu já não estivesse mais ali.
- O senhor está
afirmando que eu, propositadamente, me fiz de vítima? De que culpa quero me
redimir ao arriscar-me na insegurança das ruas?
- Aí é que está
questão... o senhor parece encaixar-se, sem dúvida alguma, em minha segunda suspeita.
Andou novamente
pela sala, se colocou atrás de mim e começou a falar baixo, pausadamente, bem
próximo ao meu ouvido.
- Logo que o vi e
comecei a interrogá-lo, notei que seu caso era diferente. O senhor não faz
parte das vítimas culpadas que querem se punir, o que torna sua situação
delicada... perigosa. O senhor é um homem muito inteligente, qualquer outro
policial em meu lugar, já teria se deixado levar por seu teatro, acreditando na
casualidade do crime, do qual, afirmo incontinente, é vítima com culpa.
Eu estava frio.
- Por favor, eu não
queria estar aqui, foram seus homens que me trouxeram, quando chegaram ao local
horas depois do fato ter ocorrido... e, se me permite, o senhor, esse local,
tudo isso está me aborrecendo muito.
- Está vendo?
Chegamos onde eu queria, no cerne da questão. O senhor é culpado de ser vítima
da mais alta periculosidade. Pensou que seu jeito de quem não está entendendo
nada e inocência presumida iria adiantar para alguma coisa? Seu disfarce não
tem eficácia diante da minha experiência em lidar com desajustados sociais. De
gente assim os porões de minha delegacia estão lotados.
O investigador
estava eufórico, gesticulava continuadamente, já sem se dar conta se falava
comigo ou com seus fantasmas.
- Meliantes como o
senhor ameaçam a estabilidade social. Tornam-se vítimas com o único e exclusivo
propósito de desacreditar a polícia, desacreditar o Estado e ridicularizar a
justiça, como uma instituição incompetente, inoperante e ineficaz.
Começou a ficar
vermelho, colocou o paletó no encosto da cadeira, o suor empapava sua camisa,
cujas mangas dobrou na altura dos cotovelos.
- Depois querem nos
punir quando, no combate aos criminosos, tomamos a justiça em nossas próprias
mãos... Queria era dar um fim no senhor agora mesmo, desaparecer com essa culpa
que nos quer imputar, que nos aponta o dedo.
Som de passos. Apagou
apressadamente, no chão, o cigarro que acabara de acender. Parou de falar e mal
cumprimentou os homens que acabavam de abrir a porta. Quieto e deitado imóvel
sobre a maca, apenas ouvi seu suspiro de resignação, quando disseram:
- Com licença,
policial, precisamos iniciar a autópsia.
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