Nunca reclamou de nada. Não que achasse a vida perfeita ou
mesmo se preocupasse com isso. Mesmo nessa noite, quando ela não entrou,
aceitou de forma natural. Apenas despiu-se do terno, que pendurou esmeradamente
no cabide. Vestiu o pijama e sentou-se defronte à TV, sem prestar a atenção ao
que passava, esperando a hora de se deitar.
No dia seguinte, ao final da tarde, quando o sol estava mais ameno, levou
Paulista para um passeio pelo quarteirão. Paulista era um vira-latas que
encontrou defronte sua casa ainda filhote. Não gostava de ir à praça onde
outras pessoas, geralmente aposentados, ficavam passeando com seus cachorros,
outras apenas sentadas nos bancos, jogando baralho, dominó, falando dos velhos
tempos, da saúde ou do último defunto. As crianças faziam muito barulho e
gostavam de provocar os animais.
Assim, como todos os dias, naquele horário, apenas deu a
volta no quarteirão com o cachorro, não sem antes armar-se de uma pequena pá e
saquinho plástico para recolher as eventuais sujeiras do Paulista.
Voltou para casa. Deu água e ração ao cachorro e foi tomar
um banho. A água morna ia tirando a espuma do seu corpo, que ele observava
descer lentamente pelo ralo. Sentiu fome.
Esquentou em banho-maria a marmitex que havia apanhado logo
após o almoço. Jantou lentamente, pensando que guardaria os restos na geladeira
para dar ao Paulista no dia seguinte. Sentou-se diante da janela da cozinha e
acendeu um cigarro, o último do dia. Há muito determinara apenas três cigarros
ao dia: um após o café da manhã, outro após o almoço e, finalmente, aquele após
o jantar.
Seu único terno, em marrom escuro, estava cuidadosamente
dobrado sobre a cama. Passou um desodorante nas axilas, borrifou no pescoço e
próximo às orelhas um perfume, comprado de uma moça sua vizinha que vendia de
porta em porta. Vestiu-se com calma e acertou o nó da gravata diante de um
pequeno espelho adaptado ao velho guarda-roupa.
Quando resolveu comprar o computador do rapaz que
trabalhava na farmácia, que o oferecia a baixo custo por dificuldades financeiras,
procurou, durante alguns meses, fazer um desses cursinhos onde se ensinam
Windows, Office e internet. Ligava-o somente durante o anoitecer, quando não estava, de
forma quase constante, na assistência técnica.
Sentou-se comodamente na cadeira que trouxera da cozinha e
ligou o computador. Enquanto aguardava pacientemente a máquina conectar-se à
internet, lembrou-se de verificar se o Paulista estava deitado sobre o velho
tapetinho na lavanderia que ficava nos fundos da casa. Ainda tinha água e
ração.
Dando uma ajeitada no terno e passando a mão sobre os
ralos cabelos para acertar um possível desalinho, entrou na sala de bate-papo.
Era sempre aquela mesma sala, a de número 13, para usuários acima de 60 anos.
Elvira tinha 69 anos, viúva e com filhos já criados. Morava
no interior e vivia da aposentadoria do marido. Mandou-lhe por e-mail uma foto
dela com o falecido Roque em um passeio que haviam feito a Campos do Jordão, em 1975.
Quando recebeu a foto pensou que não conhecia Campos do Jordão. Raramente saiu
da Penha, onde sempre morou. Tinha vagas lembranças de quando ia com seu pai,
com quem começou a trabalhar desde muito cedo, até Jundiaí visitar um tio.
Falava com Elvira pelo chat há pelo menos seis meses. Nem
sabe muito bem como começou a amizade, mas marcaram ali, naquele espaço, um
encontro diário, sempre no mesmo horário. Ele se resumia a monossilábicos
comentários, concordâncias, a saúde e o passeio com o cachorro. Ela colocava o
passado em dia, o marido falecido, os filhos, os netos e o plano funerário que
fizera para evitar dor de cabeça para os outros. Ele pensou nisso, mas não
havia dor de cabeça para outros.
Mas Elvira não entrou. Havia duas semanas que Elvira não
entrava no chat. Levantou-se calmamente para desligar o computador. Ligou, por breve instante, o televisor onde atores
corriam de explosões e tiros em um filme possivelmente de guerra. Indiferente, desligou.
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