quarta-feira, 12 de outubro de 2016

KAFKA E EU: SUMIDOS!

Era o último trem e tinha que pegá-lo. A noite estava muito fria e uma chuva fina e gelada mal me deixava ver a hora que tardava no relógio, no alto da torre, da estação da Luz.

Desci correndo para a plataforma onde o trem já estava estacionado, com a preocupação de conseguir entrar antes que as portas automáticas se fechassem.

Entrei e sentei-me a lado do único ocupante do vagão, ainda sem me dar conta disso, pois me faltava ar pela correria, além da tensão dos últimos tempos em função dos acontecimentos sociais e políticos que atravessava o país. Esses pensamentos e a tentativa de respirar rodavam na minha cabeça.

Quando a composição saiu, após o estridente apito, o homem estendeu-me a mão num cumprimento e se apresentou.

- Boa noite, sou Franz Kafka, já não nos conhecemos de algum lugar?

Ainda absorto na fadiga e conjecturas e com espanto de tê-lo percebido nesse momento, apertei-lhe a mão firmemente com uma expressão de dúvida quanto a conhecê-lo.

Perguntou-me, talvez na tentativa de uma boa conversa investigativa, sobre meus amigos. Eu já não tinha amigos. Respondi, um tanto indiferente, perguntando sobre seu pai. Calamo-nos, e calados fomos até a próxima estação.

O trem foi parando muito lentamente na plataforma e ao abrir a porta, além do vento gélido, foi invadido por uma multidão de vendedores ambulantes que seguiam um macaco, imitando-o na venda de suas mercadorias.

O macaco ofereceu-me um cigarro e, apesar da proibição de se fumar no local, aceitei. Kafka recusou.

- Pegue um – insistia o macaco, nós, os macacos também somos proibidos de vender coisas no trem.

Após a insistência ele aceitou um dos cigarros e o guardou no bolso. Talvez realmente não fumasse ou, simplesmente, decidira deixá-lo pra mais tarde.
Os vendedores iam entrando a cada estação que o trem parava e já não mais havia espaço para se locomover. Já não prestavam mais a atenção ao macaco, que lia tranquilamente uma revista sobre programação de TV, e lentamente, um a um foram nos envolvendo, aos empurrões, em busca de um espaço que os aproximasse de nós dois.

Foram nos empurrando mercadorias sobre mercadorias.

Em meio a tanta coisa que comprávamos, papéis e contratos que íamos assinando, alguns mesmo sem ler, começou a me faltar ar novamente, como se tivesse ainda correndo pra não perder o horário. Fui perdendo contato e nem mais conseguia ver meu companheiro em meio a tanta gente, papéis e quinquilharias.

Uma estação antes do meu destino o trem parou e comecei a ficar preocupado como iria conseguir descer se mal conseguia me mover. Demorou a abrir as portas.

Assim que foram abertas, os vendedores foram saindo um a um, cumprimentando amigavelmente dois seguranças da estrada de ferro que entraram acompanhados de um grupo de policiais militares fortemente armados.
Postaram-se agressivamente à nossa frente e sem dizer uma única palavra nos colocaram violentamente para fora do vagão. A plataforma já estava completamente vazia... nunca mais fomos vistos.


O macaco, única testemunha, nunca foi aceito enquanto tal.

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