quarta-feira, 12 de outubro de 2016

MULHER FATAL

Não, com certeza ainda não era meia-noite. Havia acabado de desligar a TV e peguei o De Quincey que estava relendo,


"(...) Assim espero ter demonstrado que o ópio não produz necessariamente inatividade ou torpor, mas que, ao contrário, freqüentemente me levava a mercados e teatros. No entanto, devo admitir com franqueza que mercados e teatros não são os lugares apropriados para o comedor de ópio chegar ao mais divino estado de seu aproveitamento (...)"*

quando ouvi a campainha tocando. Me levantei meio contrariado pela hora, botei os chinelos no pé, abri a porta e fui ao portão atender a pessoa.

- Pois não... o que deseja?

- Você é o Rubinho, certo!

- Sim, sou eu. como sabe meu nome? que é você?

- Ah, me desculpe... sou a Morte e vim lhe trazer um recado...

- Como? perguntei meio espantado, vai ser hoje? vai me fazer descansar das ocupações humanas aqui e agora de maneira tão prosaica, tão vulgarmente comum?

- Por que? me perguntou com um olhar frio e ao mesmo tempo indiferente, esperava um ocasião cheia de pompa e circunstância, grandiloquente? depois de velho ficou com mania de grandeza, é?

- Não, não é isso... é que não sei ainda se quero me redimir da vida, afinal...

- Bom, interrompeu secamente, não me importam seus argumentos... o recado que quero te dar é que hoje ainda não é seu dia... ainda não é dessa vez!

- Como, ainda? agradeço a deferência, mas quem te mandou aqui? deus? Dante? Alan Kardec ou algum bispo evangélico maluco?

- Não brinque comigo ou... ameaçou friamente.

- Ou o quê? você não vai me levar hoje mesmo!

- Fique sabendo, ela continuou, que não sirvo a nenhum senhor, eu trago meus próprios recados. Não sou e nem uso intermediários. Saiba que estou com você desde muito antes que a sua memória possa alcançar. Nem pode imaginar quantas vezes estive muito perto de você.

- Nossa, pelo cheiro pode até ser... e eu sempre botei a culpa nos, acreditava, peidos do Júnior ou do Gargamel e outros. Mas pela aparência, nunca percebi. Juro, acho que nunca te vi antes.

Ficamos nos medindo por um tempo que me pareceu a eternidade. O silêncio era quase mortal, posto que eu ainda estava vivo.

- Mas afinal, perguntei, quando o dia chegar eu vou pra onde? céu, inferno ou purgatório? Quem sabe Valhalla, hein?

- Não seja irônico, não vai pra lugar algum... você só vai morrer!!! a voz era tétrica.

- E não tem nada que eu possa fazer pra evitar isso?

- Não, nada! o único paliativo é continuar vivo na memória dos que continuarem vivendo provisoriamente.

- Ora, eu não quero ser lembrado como uma celebridade reduzida! exclamei com minha indignação canastrona.

- Você? sei... sei... pela primeira vez ela sorriu, ainda que de forma mordaz.

- Tá bom, tá bom... acho que seria bom ser lembrado de vez em quando por umas 5 ou 6 pessoas, se tanto, que realmente valem a pena.

Ela continuou me olhando, agora de um jeito que me pareceu mais amistoso... até cordial.

- Além disso, Morte... posso te chamar assim? em alguns anos mal se lembrarão de mim sem o auxílio de alguma velha foto enfiada numa gaveta, túmulo de velharias e que ninguém vai colocar flores. Claro, sem contar que você pode chegar antecipadamente pra eles e interromper minha vida em suas memórias.

Finalmente ela sorriu sem reservas e simpaticamente colocou sua mão fria, porém solidária, sobre meus ombros.

- Rubinho, meu querido, não quero ser irônica, mas essa é a vida!

Nesse momento, por alguma razão, me lembrei que as pessoas afirmam que o moribundo vê a vida passar diante de si como um filme, em poucos segundos. Eu me esforcei... tentei mesmo, mas não consegui... ou sou ainda um proto falecido ou meu enredo é longa-metragem.

- Mas, indaguei subitamente como que acordando de um sonho ou de um filme ruim, porque veio me dar esse recado, esse é o procedimento comum a todos os mortais?

- Não, não costumo fazer isso. Eu estava mais uma vez passando aqui pertinho de você, vi a luz acesa... além do mais está uma noite agradável, sem muito serviço... estava me sentindo mortalmente entediada e solitária.

- Sabe, definitiva amiga, apesar da fama pouco recomendável e do cheiro, você é uma mulher interessante, inteligente... diria até que esse seu ar lúgubre e misterioso confere uma certa sensualidade fora desse mundo.

Me pareceu ver um leve rubor colorindo aquela palidez, até então mórbida.

- Puxa, meu anjo, minha Valquíria, sábado vou até o Vialle tomar uma cerveja com meus amigos... quer ir comigo? Vamos lá, vai... me deixa seu e-mail... você tem Whatsapp? Facebook?

Timidamente ela baixou os olhos, o rosto cada vez mais rosacadavérico e, entre insegura e perturbada murmurou:

- Rubinho, o que você está querendo?

Era a hora. Lancei o melhor dos meus olhares, pose de galã e disparei:

- Você!!!

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