Não, com certeza ainda não era meia-noite. Havia acabado de desligar a TV e peguei o De Quincey que estava relendo,
"(...) Assim
espero ter demonstrado que o ópio não produz necessariamente inatividade ou
torpor, mas que, ao contrário, freqüentemente me levava a mercados e teatros.
No entanto, devo admitir com franqueza que mercados e teatros não são os
lugares apropriados para o comedor de ópio chegar ao mais divino estado de seu aproveitamento (...)"*
quando
ouvi a campainha tocando. Me levantei meio contrariado pela hora, botei os
chinelos no pé, abri a porta e fui ao portão atender a pessoa.
-
Pois não... o que deseja?
-
Você é o Rubinho, certo!
-
Sim, sou eu. como sabe meu nome? que é você?
-
Ah, me desculpe... sou a Morte e vim lhe trazer um recado...
-
Como? perguntei meio espantado, vai ser hoje? vai me fazer descansar das
ocupações humanas aqui e agora de maneira tão prosaica, tão vulgarmente comum?
-
Por que? me perguntou com um olhar frio e ao mesmo tempo indiferente, esperava
um ocasião cheia de pompa e circunstância, grandiloquente? depois de velho
ficou com mania de grandeza, é?
-
Não, não é isso... é que não sei ainda se quero me redimir da vida, afinal...
-
Bom, interrompeu secamente, não me importam seus argumentos... o recado que quero te dar é que hoje ainda não é seu dia... ainda não é dessa
vez!
-
Como, ainda? agradeço a deferência, mas quem te mandou aqui? deus? Dante? Alan
Kardec ou algum bispo evangélico maluco?
-
Não brinque comigo ou... ameaçou friamente.
-
Ou o quê? você não vai me levar hoje mesmo!
-
Fique sabendo, ela continuou, que não sirvo a nenhum senhor, eu trago meus
próprios recados. Não sou e nem uso intermediários. Saiba que estou com você
desde muito antes que a sua memória possa alcançar. Nem pode imaginar quantas
vezes estive muito perto de você.
-
Nossa, pelo cheiro pode até ser... e eu sempre botei a culpa nos, acreditava, peidos do Júnior ou do Gargamel e outros. Mas pela aparência, nunca percebi. Juro, acho que nunca te
vi antes.
Ficamos
nos medindo por um tempo que me pareceu a eternidade. O silêncio era quase
mortal, posto que eu ainda estava vivo.
-
Mas afinal, perguntei, quando o dia chegar eu vou pra onde? céu, inferno ou
purgatório? Quem sabe Valhalla, hein?
-
Não seja irônico, não vai pra lugar algum... você só vai morrer!!! a voz era
tétrica.
-
E não tem nada que eu possa fazer pra evitar isso?
-
Não, nada! o único paliativo é continuar vivo na memória dos que continuarem
vivendo provisoriamente.
-
Ora, eu não quero ser lembrado como uma celebridade reduzida! exclamei com
minha indignação canastrona.
-
Você? sei... sei... pela primeira vez ela sorriu, ainda que de forma mordaz.
-
Tá bom, tá bom... acho que seria bom ser lembrado de vez em quando por umas 5
ou 6 pessoas, se tanto, que realmente valem a pena.
Ela
continuou me olhando, agora de um jeito que me pareceu mais amistoso... até
cordial.
-
Além disso, Morte... posso te chamar assim? em alguns anos mal se lembrarão de
mim sem o auxílio de alguma velha foto enfiada numa gaveta, túmulo de velharias e
que ninguém vai colocar flores. Claro, sem contar que você pode chegar antecipadamente pra eles e interromper minha vida em suas memórias.
Finalmente
ela sorriu sem reservas e simpaticamente colocou sua mão fria, porém
solidária, sobre meus ombros.
-
Rubinho, meu querido, não quero ser irônica, mas essa é a vida!
Nesse momento, por alguma razão, me lembrei que as pessoas afirmam que o moribundo vê a vida passar diante de si como um filme, em poucos segundos. Eu
me esforcei... tentei mesmo, mas não consegui... ou sou ainda um proto falecido
ou meu enredo é longa-metragem.
-
Mas, indaguei subitamente como que acordando de um sonho ou de um filme ruim,
porque veio me dar esse recado, esse é o procedimento comum a todos os mortais?
-
Não, não costumo fazer isso. Eu estava mais uma vez passando aqui pertinho de
você, vi a luz acesa... além do mais está uma noite agradável, sem muito
serviço... estava me sentindo mortalmente entediada e solitária.
-
Sabe, definitiva amiga, apesar da fama pouco recomendável e do cheiro, você é
uma mulher interessante, inteligente... diria até que esse seu ar lúgubre e
misterioso confere uma certa sensualidade fora desse mundo.
Me
pareceu ver um leve rubor colorindo aquela palidez, até então mórbida.
-
Puxa, meu anjo, minha Valquíria, sábado vou até o Vialle tomar uma cerveja com meus amigos...
quer ir comigo? Vamos lá, vai... me deixa seu e-mail... você tem Whatsapp? Facebook?
Timidamente
ela baixou os olhos, o rosto cada vez mais rosacadavérico e, entre insegura e
perturbada murmurou:
-
Rubinho, o que você está querendo?
Era
a hora. Lancei o melhor dos meus olhares, pose de galã e disparei:
- Você!!!
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