segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

SOBRE O JOÃO

O João era um caso único em nossa turma. De um lado um humor fantástico, divertido e exuberante, de outro um mau-humor corrosivo e despeitado. A própria cizânia.

Entre o fim da década de 1960 e meados da década de 1970, tínhamos o hábito de fazer uma espécie de “teatro de rua”. Tudo de improviso. Não importava se tinha gente ou não. Geralmente era o João que lançava uma ideia, uma história e íamos atrás desenvolvendo. Isso em qualquer lugar ou qualquer hora. Éramos bons nisso. Todos tinham uma rapidez em perceber e desdobrar o que era proposto.

Uma noite, a Praça Santo Antonio, no centro de Caieiras, estava lotada. Mulheres e homens elegantemente vestidos para ir ao baile de réveillon. E nós ali, ripongos, observando a cena.

O João caminha lentamente para o centro da praça, em meio à multidão, se joga ao chão, estrebuchando como se fosse uma convulsão. O Emi, irmão dele, já percebendo a coisa começou a gritar, como que desesperado:

- João, o que está acontecendo? Socorro, ajudem meu irmão! Fomos todos juntos, ali tentando segurá-lo. Gritávamos, como que sem ação, pedindo ajuda.

Formou-se uma imensa roda de curiosos pré-réveillon. E nós ali, “desesperados”. E o João ali, estrebuchando e até babando. Dona Rosa, uma senhora idosa, minha vizinha, se ajoelhou para ajudá-lo.

Repentinamente o João solta um berro, daqueles horrendos, levanta-se do chão todo torto, babando, e vai pra cima das pessoas. Era gente correndo pra todo lado. Esvaziou a praça. A dona Rosa nem sei onde foi parar.

Talvez irracionalmente, essas encenações de pânico eram feitas próximo às pessoas de boa índole da sociedade cristã caieirense. Pessoas que procuravam nos marginalizar, que nos taxavam de maconheiros, vagabundos, viados... escória. Racionalmente era uma maldade, mas como era divertido.

Por outro lado, tudo de bom que pudesse acontecer com você e fosse contar ao João, já provocava seu mau-humor. Sua autoestima era tão baixa que entendia como querer humilhá-lo. Não aceitava nada de bom para as pessoas que não tivesse a intenção de diminuí-lo. João nunca havia namorado. Nunca havia beijado uma menina. Claro, algumas pessoas da turma, de caráter mais cruel, jogavam isso na sua cara, com a intenção, aí sim, de humilhá-lo diante de todos. Hoje tenho uma compreensão um pouco melhor de toda essa situação.  

Da turma ele era o único que não dava uns tapas na pantera. Nem podia saber. Apenas desconfiava.

- Emi, se eu souber que você está fumando maconha, eu conto pro papai. Essa ameaça era constante.

Nessas questões, por prudência, o mantínhamos à distância, afinal o tal papai era um homem bronco que costumava dizer aos filhos: do jeito que te pus no mundo, eu faço você voltar.


João morreu afogado em um acampamento que fizemos em um feriado de 7 de setembro de 1975. Mas essa história fica pra depois. Eu e ele tínhamos 20 anos.

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