sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

EU, ALI SOZINHO, ÉRAMOS MUITOS!

A infância é geralmente tratada de forma pueril, onírica, onde a inocência prevalece sobre os distorcidos valores dos adultos. Não falo aqui da infância miserável sustentada pelo mundo adulto e sua civilização e civilidade exploratória, resignada em sua compaixão judaico-cristã.

Todos nós sabemos que essas doces histórias infantis são frutos de poetas e escritores cujo açúcar transborda pelas páginas. Histórias infantilizadas. Omissas para o resguardo de memórias de mérito e admiração. Na maioria das vezes todos somos assim.

A primeira violência na mutação da minha infância em adulto precoce se deu quando tinha por volta de quatro ou cinco anos. Como já citei outras vezes, meu pai irascível e alcoólatra. Um dia totalmente embriagado começou a brigar com minha mãe. Provavelmente minha irmã, com nove ou dez anos, chorava no quarto. Meu irmão, com dois ou três anos, no berço. Repentinamente, em meio à discussão, meu pai pega uma cadeira para agredir minha mãe. Não sei como, chorando, me coloquei entre os dois para impedir a agressão. Só me recordo do meu pai me olhando com olhos esgazeados, parado, sem ação, segurando a cadeira acima da cabeça. O depois é densa neblina.

Creio que logo após esse fato meu pai parou de beber.

Acredito que minha infância foi razoavelmente dentro do normal. Sempre tive muitos amigos. Mas, paralelo a isso, desenvolvi um mundo muito particular. Brincava com os amigos, mas achava tudo aquilo muito previsível, sempre igual. Era quando eu entrava em meu mundo e desenvolvia minhas brincadeiras, inventando histórias, criando amigos e inimigos, desenvolvendo artefatos com pedra ou madeira. Eu, ali sozinho, éramos muitos. Infinitas perspectivas.

Foi quando também comecei a me dedicar mais ao desenho, por influência de meu pai, que também desenhava razoavelmente bem. Desenhar, para mim, sempre foi um ato muito solitário, só houve uma exceção onde trabalhei um desenho em conjunto com outra pessoa. Mas isso é outra história.

Passados alguns anos veio a renúncia do Jânio Quadros, seguida de toda dificuldade da manutenção do João Goulart na presidência, Adhemar de Barros no governo do estado e finalizando com o golpe militar de 1964. Período de perseguições políticas, onde minha mãe perdeu seu cargo no hospital psiquiátrico do Juqueri e meu pai foi transferido para uma colônia distante, onde não havia nem condução para se chegar. Comprou uma bicicleta.

Sem entender o que acontecia via meus pais queimando documentos, propagandas políticas, falando baixo e retirando o diploma de vereador, cargo que meu pai exerceu no município de Franco da Rocha, até então enquadrado na parede e exibido com orgulho. Foi quando ele voltou a beber.

Lembro-me do primeiro dia dessa nova fase. Todos nós, em casa, preocupados com sua demora em chegar do serviço. Minha mãe tentando saber com um ou outro alguma notícia... e nada. Chegou tarde da noite. Bêbado. Eu com meus nove ou dez anos nunca senti tanta vergonha quando de manhã, ao ir pra escola, meus primos e amigos vizinhos perguntavam sobre a carraspana do meu pai. Virou hábito.

Brigas se sucediam. Passado algum tempo, ele totalmente embriagado, começou uma violenta discussão com minha mãe. Quando percebi, ele estava com uma faca na mão, indo pra cima dela. Em um daqueles momentos em que a ação é mais rápida que o pensamento, me atirei sobre ele, arranquei a faca da sua mão. Fiquei de frente pra ele, meio caído sobre a mesa da cozinha, e comecei a enterrar a faca em meu próprio peito. Não, não estou fazendo literatura.

- Você quer um morto, então vai ter, eu gritava pra ele, chorando e pressionando cada vez mais a faca contra o peito.

Nunca. Nunca senti tanta vontade de morrer como naquele dia. Mas não me bastava morrer. Queria que minha morte tivesse como herança a culpa. Queria que minha morte fosse o pesadelo do meu pai. Queria, morto, ser o inferno da vida dele.

Minha mãe rapidamente tirou a faca da minha mão. Ele ali, com o mesmo olhar esgazeado que trago desde os cinco anos. Inerte.

Depois desse dia, até sua morte, meu pai nunca mais colocou uma gota de álcool na boca. Continuou com as discussões normais de casal com minha mãe. Aprofundou-se em seu catolicismo, se aproximando, mais tarde, da Teologia da Libertação. Foi um excelente avô, cujas histórias junto a ele os netos não se cansam de contar, entre risadas. Depois dessa fase, não me lembro de qualquer atitude agressiva por parte dele.


Já em minha fase adulta foi meu grande companheiro. Ficamos em paz. Mas, por tudo isso, ainda choro muito. Um choro sem inocência.

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