terça-feira, 20 de dezembro de 2016

DAS FACILIDADES

Minha mãe era uma mulher que não aceitava facilidades. Criada em sítio, ainda menina teve que trabalhar como doméstica. Aos quinze anos começou a trabalhar no hospital psiquiátrico do Juqueri, onde se aposentou. Ali dentro nunca nos preservou do contato com os internos, sempre tratados com dignidade. Éramos iguais.

Histórias do Juqueri são tantas. Cidinha, menina negra, que se dizia amante do Bandido da Luz Vermelha. Menina doce que nos tratava com muito carinho e vivia grudada em minha mãe. Menina que não podia ter qualquer objeto cortante ao seu alcance. Mutilava-se, sangrando, cicatrizes sobre cicatrizes outras que desconhecíamos. Cabelos curtos, muito limpos, roupa de interna, carimbada, e um sorriso que não ouso tentar repetir aqui.

Histórias do outro lado do muro. Minha mãe arrombando a porta do um banheiro, onde um médico psiquiatra estava morrendo sufocado pelas próprias fezes. Ela tendo que enfiar o dedo na garganta para salvá-lo de um prazer, que naquele momento o matava. Salvou.

Interna enorme, forte, após momento de muita agressividade, onde quase matou outra interna, implorava à minha mãe: “fia, não deixa eles me dá eletrochoque. Vou Morrer!”. E morreu.

Não, ela não aceitava facilidades. Fez meu pai devolver pra loja uma enceradeira que havia comprado, pois não abria mão do seu escovão. Com o escovão ela passava palha de aço para tirar o restante da encerada anterior. Ajoelhada, com um pano nas mãos, passava a cera. Seca a cera, com o escovão, dava o lustro. Enceradeira, jamais!

Assim, nunca aceitou a batedeira de bolo, que ficou para sempre encostada num canto do armário. Ela fazia e batia sua massa de bolo. Da mesma forma com o pão, com a massa de pizza e etc. A única facilidade que aceitou foi o liquidificador. Em verdade pouco usado. Máquina de lavar roupas, nem pensar!

Acredito que, por herança, também não sou de aceitar facilidades. Também tenho o agravante de não facilitar muito.

Quando casado, a Marli resolveu comprar uma máquina de lavar louças. Lavar a louça era uma das minhas tarefas na divisão de trabalho de casa. Com pouco tempo de uso fui me incomodando com a máquina pelo trabalho que dava, além do serviço porco. Não pensei duas vezes: peguei a incompetente serviçal mecânica e coloquei no lixo. Sem mais.

A máquina de lavar roupas raramente usava. Sempre preferi lavar minhas peças ali no tanque. Resultados outros.

As pessoas, habituadas aos confortos do mundo moderno, me questionam com certa insistência a razão pela qual não compro um carro, uma máquina de lavar e não sei mais lá quantas coisas. Pra não haver tanta teimosia, respondo que, ou não quero ou não posso. Ou ainda que não posso e não quero. Simples.

Lavar louças, lavar e passar roupas, andar de ônibus, trem ou metrô, é onde me abstraio. É onde posso ser humano. É onde extraio o melhor que posso me dar e poder oferecer-me. Eis, nesses momentos, onde me sei no mundo e em mim ele pletora.


Sei muito bem o cansaço e dor física que essas atividades proporcionam. O mesmo cansaço e dores da minha mãe, já idosa e quase incapaz, insistindo em executá-las. E querem tirar isso da gente. Querem nos tirar a única dor que nos escuda no enfrentamento com as dores do mundo. Querem nos dar a comodidade alienante de um corpo no sofá.

Quem viveu e viu há de me entender.

2 comentários:

  1. nobreza: eis a palavra que você usou, eis a vida que ela ousou.
    quantas histórias de Dona Alfredina!
    ... e uma herança nobre sem facilidades, porém com um toque corso do Oswaldo a dizer malandramente: há que lavar a louça, porém dançando!

    ResponderExcluir